Escutei essa frase na quinta-feira no discurso de abertura de uma exposição fotográfica de um mexicano sobre São Paulo no museu Diego Rivera, na Cidade do México. Segundo ele, que tinha vivido quase 6 anos no Brasil, a terra tupiniquim não é latina. Foi a segunda frase que pronunciou. A primeira era da necessidade de aproximar São Paulo da Cidade do México. Queria ter perguntado a ele: você se garante?
Estava com alguns amigos, entre eles meu cumpradre Nuno, historiador cearense que vive um tempo por aqui também, e quando escutamos isso nos entreolhamos e pensamos: “ouvi direito o que ele falou?!” Sim, o fotógrafo afirmava, sem dizer como chegou a essa conclusão, que o Brasil não faz parte da América Latina.
A exposição foi inaugurada e passamos a olhar as fotos. Eu, paulistano de alma, entrei desconfiado. Afinal, depois de falar isso do Brasil o que poderia vir seria uma surpresa. As fotos são mesmo muito bonitas e ele faz um bom recorte da realidade de São Paulo. Estão lá imagens da ocupação Prestes Maia, do Banespa, da Luz, do Minhocão, dos condomínios de luxo do Morumbi, as ruas da Brasilândia, dos guaranis na zona sul, e de gente anônima nas muitas ruas da cidade. Foi divertido contar algumas histórias que vivi e que conheço desses lugares para os amigos que me acompanhavam. Não está mal, mas essa história de não ser latino...
Meu camarada Nuno foi o primeiro a escaldar o sujeito.
“Cara, como assim o Brasil não é América Latina?”
A resposta foi mais ou menos essa:
“Não é não. Primeiro que vocês não escutam rock espanhol. Depois a comida não tem nada que ver. Olha a Colombia e a Venezuela por exemplo, elas sim se parecem”.
“Cuméqueé?” Respondeu Nuno.
A gente ficou um tempo pensando sobre a maneira de entender o motivo do Brasil não ser latino pela visão do rapaz enquanto desfrutávamos do goró servido nessas ocasiões. Achava importante entender isso um pouco melhor. Fui eu escaldar um pouco também.
- Meu, as fotos estão boas.
- Você gostou? Te parece mesmo o que está lá?
- Sim, gostei das fotos da Prestes Maia e do centrão. Conheço muito bem esses lugares. Mas vem cá, como é isso pra você do Brasil não ser latino?
-Eu acho que não é! Vocês escutam outra música, comem outras coisas. Portugal e Espanha não tem nada a ver. E olha os negros no Brasil e nos outros lugares...
Então, trim, trim, trim... o telefone dele toca e ele vai atender. Não volta. E eu ali de boca aberta pensando principalmente na ultima coisa que ele falou. “Os negros o quê?!” Parece que o rapaz comete dois erros muito comuns ao pensar a questão latino americana; que é o fato de que latino é “hablante” de espanhol, e o segundo erro, o da colonização. Esclarecendo então: América Latina é nesse sentido primeiramente uma construção geo-sócio-política. Mesmo com a diferença linguística entre espanhol e português (mas ambas são românicas) compartilhamos o mesmo processo em relação a construção desse território no continente americano, particularmente no último século. Em outras palavras, os gringos sempre trataram de nos foder igual! Se não leu leia “As veias abertas da América Latina”, de Eduardo Galeano. Tá bem explicadinho. Os povos originários e seus idiomas sempre receberam tratamento parecido de seus colonizadores: repressão e extinção.
Isso nos leva ao outro ponto, e vou tomar o caso dos negros, questão misteriosamente surgida no exemplo do fotógrafo. O que muda no fundo é o processo de aculturação e construção do preconceito, porém todos compartilham de partida a mesma coisa: chegaram aqui raptados e para serem escravos. Até agora não aconteceram reparações adequadas ou reconhecimentos históricos e subjetivos sobre isso em nenhum lugar da América Latina. Estão os negros brasileiros, colombianos, hondurenhos e mexicanos em condições tão diferentes assim? Como se constrói o racismo em cada lugar? São distintos onde? Bom, na Argentina e Uruguai a coisa foi bem diferente mesmo... alí a morte foi mais explicita, se podemos dizer isso... e no México... eis aí algo para o fotografo passar a considerar. Saberá ele que existem negros no México? Para muitas pessoas aqui, particularmente a classe média, uma elite extremamente desconhecedora de seus processos históricos e racista como a mexicana (igualzinha a brasileira, afinal quem já não ouviu o absurdo de dizerem que não há racismo no Brasil?!), a resposta é clara: não há negros no México! Pois sendo esse o entendimento que se dá, realmente passamos a compreender porque o Brasil não é latino americano. Somos mais negros que indígenas, enquanto aqui é o contrário, e isso nos exclui da identidade latina. O que será que o rapaz pensaria de minha cor?
Outro ponto comum nos erros da questão latina, ou mesmo dos lugares não tão comuns sobre o reconhecimento, é o fato de se negar ao outro o direito a auto-determinação. Para começo de conversa, é latino quem diz que é! A coisa não é tão simples, mas dá pra entender. Como estamos considerando vários elementos subjetivos na formação da identidade, tanto individual como coletiva, é fundamental perguntar aos interessados e envolvidos nesse processo o que eles pensam de si mesmos. Claro que muitos brasileiros não se consideram latinos, particularmente porque não se tem o espanhol como língua oficial ou se a pergunta for feita para uma classe média branca acostumada com suas referencias européias; além de também existir um profundo desconhecimento dos processos de colonização por grande parte dos países latinos e do roubo de suas memórias. Temos que considerar isso, da mesma forma que o reconhecimento não se constrói sem uma memória justa, coisa que também até esse momento nunca rolou tendo o lugar da negritude nesses processos de formação do povo brasileiro e latino como um todo.
Mas se há algo que não se desconhece e que sabemos muito bem, é a relação entre as elites e as multidões; A polícia racista e a criminalização dos pobres; A corrupção institucional; A herança escravocrata; Os privilégios de cor e gênero; Os lugares subalternos; A mentalidade colonial; O classismo; As ditaduras; Os assassinatos; Os carros blindados; A quantidade de latinos na lista das pessoas mais ricas do mundo; Os movimentos sociais, caralho, os movimentos sociais!; a luta indígena; Os moradores de rua; A fome; etc, etc, etc. São todas coisas compartilhadas na América Latina de modo singular. São fatores pertencentes a processos sócio-políticos compartilhados, que possuem sim particularidades e modos próprios de operarem, mas facilmente identificados por todos latinos. A coisa é visceral e está no corpo. Não é determinante, mas claro que há sutilezas dependendo da classe social por onde você transita quando está em outro país e sua leitura pode ser bastante influenciada por isso. Por onde andou esse rapaz enquanto esteva no Brasil? Como se deu a aproximação com as pessoas que estão em suas fotos? Por onde andará ele no México? Então, como falei, latino é quem diz que é, mas que se garante! É negro quem se garante negro e é índio quem se garante índio.
No que diz respeito a solidariedade, nós brasileiros nos garantimos desde a Terra do Fogo até Tijuana. Na minha casa, e na de várias pessoas, se comem dois, comem três. Naquilo que interessa a luta por uma vida melhor, somos Mapuches, Xavantes, Garifunas, e Mazatecos. Nossa memória compartilha o terror da colonização que teve inicio a mais de 500 anos. Assim também, cantamos e dançamos sem esquecer de onde viemos. Somos um monte de comedores de feijão e milho e o trabalhador que bebe a cachaça no buteco da periferia paulistana tem as mesmas histórias que o mexicano na pulqueria em La Merced ou Tepito no DF. Aqui salário mínimo nunca foi sequer salário e mesmo assim vive uma família inteira com isso. Poetas sarcásticos que sempre farão piadas e “bromas” de portugueses e espanhóis, mesmo sabendo que muitos deles são “buena onda”. O gaúcho pode ter mais afinidade com o uruguaio do que com o maranhense, da mesma forma que o maia de Chiapas se aproxima mais do quatemalteco do que com o norteño. Aqui vivemos e agradecemos aos lindos Orixás, a única Pachamama e a la Guadalupe. Não somos latinos?
Eu digo que sou. E me garanto!