quarta-feira, 6 de maio de 2009

Uma história de vida

Lucio Urtubia: "Inclusive quando estava preso, me sentia um homem livre".

Algumas horas antes de aterrissar em Madri para assistir a várias conferências e palestras em torno de sua vida, o pedreiro Lucio Urtubia havia deixado uma vez mais as portas abertas de seu apreciado “Espaço Louise Michel”, um centro sociocultural que funciona em uma casa que comprou em um bairro da periferia de Paris e recuperou com suas próprias mãos. Ali foi feito um encontro com duzentos jornalistas (chamado de “obreiros”) da Radio France Internacional que iriam ser despedidos. Como no passado, muito recorrem a Lucio para que lhes de refúgio, uma boa maneira de seguir praticando a solidariedade com os mais necessitados. Como disse a combatente Louise Michel, “uma mulher que viveu ricamente sem um centavo”, na Comuna de Paris, Lucio Urtubia segue pensando que “todo o poder corrompe”, razão suficiente para seguir sendo anarquista.

E de anarquismo falamos, mas também de construção, da profissão que Lucio segue e onde tem dedicado as mesmas mãos que empenhou com entusiasmo durante anos em lutas pela dignidade, para atacar bancos, falsificar documentos, cheques de viagem, atividades em conjunto com todos aqueles que queriam subverter o mundo e alterar um dos maiores bancos do momento, o First National City Bank. Por ser pedreiro e homem de ação, tem na memória sempre personagens que influenciaram sua vida, cita Cipriano Mera, “ainda que fosse mais feio que o diabo!”. O trabalho de azulejador e as cooperativas que têm montado durante anos de trabalho e militância lhe fizeram ver certa similaridade na autogestão praticada com seu trabalho e as idéias libertárias: “me parece bom destruir certas coisas, assim pode-se construir novas sobre essas”, assegura.

Os jovens, e os que não são tão jovens, cercam Lucio para escutar o torvelinho de palavras e idéias que não cessam, apesar de seus 78 anos de idade e de seu andar um tanto ressentido, devido a cirurgias. Mas, nada impede a linguagem politicamente correta, que Lucio Urtubia, acusado inúmeras vezes de bandido, diga realmente quem são os ladrões e caloteiros deste mundo, em que o sistema capitalista aparentemente em decadência tem mostrado abertamente sua crueldade e mentiras: “não há nada mais corrupto do que proteger os bancos”. “Porque não sou mais que nada”, devido entre outras coisas à promoção realizada pelo documentário, Lucio é apresentado como: “Lucio, anarquista, assaltante, falsificador, mas, sobretudo, pedreiro”, de Jose Mari Goenaga e Aitor Arregi; o livro romanceado “Lucio Urtubia, o anarquista irredutível”, de Bernard Thomas, e a autobiografia “A revolução pelo telhado”, editada por Txalaparta.

Sua vida em Paris, cidade em que vive há mais de 50 anos e onde, dizem, aprendeu e descobriu tudo e que acabou tornando-se um ímã para ele, vê a rápida mudança da cidade graças a suas viagens para assistir a debates e conferências sobre anarquismo em todo o mundo. Como ele comenta, “me assistem até os filhos dos fachas”, em alusão ao interesse sobre sua história, despertado inclusive em sua terra natal, Navarra, fronteira que sempre esteve dominada pelas ideologias reacionárias, ainda que existissem multidões de pessoas lutadoras que foram exterminadas, pelo que recorda, mais de 5000 fuzilados pelo franquismo. “Essas pessoas não haviam feito mal nenhum”. Lucio tampouco pára de cruzar os salões universitários, justo ele, que apenas aprendeu algo no Colégio Carmelita, e que foi quase todo tempo autodidata, aonde se projeta o documentário e se fala da esperança que se pode conseguir neste mundo de “conflito econômico”. Utiliza como exemplo sempre as práticas do passado, dos anarquistas na Espanha e em outras partes do mundo que conseguiram modificar os esquemas de uma sociedade velha e colocar em prática uma nova. Ainda que não tenha conseguido transmitir ou reproduzir as conquistas a todos: “o movimento libertário não tem sabido explorar sua própria história”, mas sabe que agora, mais do que nunca, o anarquismo segue vivo em muitas lutas do planeta. Lucio ficou muito feliz quando recordou do movimento autogestionário no Brasil, o qual coloca como exemplo, “para resistir e seguir ainda que haja poucas pessoas, porque senão, acaba-se tudo!”. Não vê mais solução além do ensino libertário, apesar da consciência de que cada etapa da história e da vida tem que se buscarem mudanças: “Os jovens são os que têm que buscar novas fórmulas em cada momento”, afirma.

Filiado às Juventudes Libertárias

Homem de ação incansável, tem militado principalmente para as idéias mais do que para organizações. Assegura que unicamente está filiado às Juventudes Libertárias e conclama amigos para todo o movimento libertário, inclusive a CNT. Talvez porque sabe que a fronteira de idéias acaba mais unindo que separando as pessoas que estão com um ideal de sociedade comum. Não esconde suas criticas as organizações, também à CNT. “Menos anarquia e mais feitos”, proclama quando considera que atualmente temos mais meios que antes, mas está tudo por fazer. “Não somos anjos e já passou o tempo de cada no seu lado”. Diz ainda: “a sociedade espanhola necessita das idéias libertárias e devemos acabar com a crença de que somo melhores que os outros. Não se é anarquista pelo que se diz, mas pelo que se faz. A prática é o que determina”.

Para Lucio Urtubia, que aprendeu observando e que por ser “pobre, pobre” não teve que fazer nenhum esforça para “perder todo o respeito pela Igreja, pelo Poder e pelo Estado”, o anarquismo é trabalho e trabalho, mais honradez. Surpreende que alguém relacione anarquismo com responsabilidade, bondade e até com a palavra carinho, "justo tudo o contrário do que dizem por aí", comenta. O que nos ensinaram os demais no passado é o exemplo, “mas nem tudo consiste em recuperar a memória histórica, sem pensar no futuro, sem pensar se somos ou não, capazes de colocar em prática a autogestão”, indica.

“Trabalhando podemos encontrar as soluções” é uma de suas máximas. Trabalhando também se aprende. Assegura Lucio que a maior parta das coisas que acabaram lhe dando fama não foram mais do que o "fruto do trabalho, de pensar, planificar sem descanso, ação”. Alude-se a ele a imagem de falsificador, sustenta igualmente de que não fez outra coisa além de rodear-se “de gente que levava anos e anos nos ofícios”. A solidariedade entre iguais funcionou e cada um partilhava o conhecimento que, somado ao de outros, logrou objetivos que para muitos hoje seriam impraticáveis.

Lucio Urtubia gosta de falar de dinheiro, sobretudo para desprezá-lo e assegurar que, inclusive agora, o capitalismo confirma sua própria capacidade inepta; dinheiro há de sobra, porque não é riqueza, apenas um pedaço de papel, papel esse que se fabrica, imprime, fictício, uma invenção absurda, papel falso, inclusive muito mais falso que as perfeitas imitações que chegaram a realizar dos cheques bancários do City Bank. Recorda outra vez a Louise Michel que viveu ricamente sem dinheiro, porque fez mil coisas e porque se tivesse tido dinheiro “só teria se ocupado dele”. Este é um dos principais males que se vê na sociedade que vivemos e na qual “quanto mais tem um, mais quer ter, e quanto menos fizer, melhor”. Considera que “não é porque um tem mais, que come mais, bebe mais e dorme mais”. Não estou contra a inteligência, estou contra a imbecilidade”. Pensa que, se tivesse muitos anos a menos, estaria hoje praticando as okupações, na ação contra a especulação do sistema e aproveitando que o sistema abandona. Agora que tem a oportunidade de constatá-lo, assegura que o movimento contra a ordem estabelecida existe, e que é muito agradecido por poder dizer o que viveu aos jovens.

Inimigo número um do Sistema

Admirado por ter conseguido manter em xeque o maior banco do mundo com a falsificação de “travelers checks” e por empunhar uma arma, como um Quixote, para expropriar o dinheiro que os bancos roubam, nota sempre que em cada lugar e situação tem sua própria solução. As coisas não são iguais ao passado e nem as práticas são as mesmas. Se o inimigo evolui, também temos de ter uma resposta alternativa. Com uma vida como a sua, é inevitável não perguntar sobre a ação violenta que teve. “Não estava preparado para fazer assaltos a bancos, mas não havia outro remédio”. Demonstra a satisfação de “nunca ter matado ninguém”, o que afirma teria sido muito dolorido para mim, porque sempre respeito o físico das pessoas, mas não dos poderes.

Tudo para a solidariedade

As mãos de Lucio Urtubia parecem mais as de um pedreiro, que as de um falsificador ou assaltante. Talvez porque na realidade os verdadeiros assaltantes e falsificadores são os outros, os quais ele combatia e combate com entusiasmo. Algumas vezes fica quieto, com os dedos entrecruzados. A idade se mostra menos na cabeça do que nas pernas, e proclama que há de viver dignamente lutando! As casas que construía, os azulejos e lajotas que colocava, levavam aderidas umas idéias. Sua profissão lhe serviu para ajudar e fazer amigos, e suas ações como militante anarquista serviram a muitos para resistir a uma ditadura, para praticar o apoio mútuo e nada sobrava para o proveito próprio de Lucio. Se fosse de outra maneira, não seria Lucio.

Conta que sua faceta de escritor o leva a escrever cartas além do necessário, proclama ser uma pessoa que não usa celular, nem tem computador, nem relógio. Uma de suas cartas foi dirigida a Zapatero para solicitar uma ação que considera boa, um ato de humanismo, como de levar os presos bascos às prisões do país Basco. Afirma que viu inúmeras vezes o sofrimento dos familiares que perambulam de prisão em prisão, milhares de quilômetros para estar algumas horas com os seus. E coloca-se como exemplo para indicar que o cárcere serve apenas para agravar o problema que se quer evitar: “Se eu estivesse preso, não haveria outra coisa a fazer senão acumular o ódio!”. No cárcere estive, mas não por tanto tempo, e afirma “inclusive quando estava preso me considerava um homem livre”. Também se corresponde com outro preso “esquecido” no corredor da morte nos Estados Unidos, Pablo Ibar, e até escreve a El Solitário, que tem o costume de proclamar-se como expropriador de bancos e anarquista, ainda que tenham diferenças e tivera que responder em outros tempos e ações similares “todo o dinheiro ia para a solidariedade”.

O bom de conversar com Lucio Urtubia é o proveito de desmistificá-lo. Afirma que a França é um país traidor, hipócrita, que não respeita os direitos humanos, como fez na Argélia; que se portou totalmente mal com os republicanos e anarquistas espanhóis, país revestido de idéias que não prática. Também afirma com conhecimento de causa a “suposta” revolução cubana, “pela qual teria dado a vida”, e assegura: “Che não era um revolucionário e Fidel é um perverso”. Afirma que na América Latina, como ocorre também com a Europa, a revolução cubana é um mito intocável, sobretudo porque o que se tem feito é vender-se, fazer acreditar aos demais o que não era. Renega a solidariedade exercida por muitos grupos a favor da revolução cubana “porque o dinheiro nunca ia para o povo cubano, e sim para o poder de Cuba e o Partido Comunista”.

E assim, sem parar, se prepara para a próxima cidade, a próxima conferência, a próxima homenagem, ou discurso para animar as pessoas que continuam com o empenho de criar, de buscar uma vida mais interessante. “A vida é o que se faz”, conclui: “se nada se faz, termina sendo uma desgraça”.

Fonte: Periódico CNT - abril 2009

Tradução > Palomilla Negra

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