[Palestra proferida na abertura da Reunião de Fundação da Sociedade Vegana, São Paulo, 14/03/2010] Sônia T. Felipe (UFSC/ Univ. Lisboa)
Há milênios, humanos possuem animais, usam, escravizam e matam animais para atender a qualquer propósito seu. Há milênios, os humanos inventaram uma ética para justificar a animalização de seus hábitos e servir igualmente a seus propósitos, a ética antropocêntrica. Humanos inventaram não apenas a escravização de animais, alegando que eles são inferiores. Eles inventaram um modo de justificar suas práticas escravizadoras, ao argumentarem que seres inferiores a eles nascem para servi-los, e, por isso, são objetos passíveis de apropriação.
Chegou a hora de redefinir a concepção moral antropocêntrica, colocando-a em seu devido lugar: ela deve limitar-se a conceber os humanos como fonte da moralidade, definindo o fim último da ética como sendo o bem que os humanos podem fazer ao desanimalizarem seu consumo.
Por animalização da alimentação, vestuário, lazer, ciência e linguagem humanas, entendo toda prática levada a efeito às custas do bem próprio, da liberdade e da vida de animais não-humanos e humanos. A ética precisa partir do valor maior impregnado à existência dos seres vivos: poder viver em liberdade.
Na perspectiva ética vegana, humanos perdem o estatuto de proprietários e beneficiários da vida alheia. Reconhecer direitos fundamentais à vida e ao bem próprio de cada ser vivo é o modo razoável de resguardar a singularidade do bem próprio à vida deles, sendo indiferente ao agente moral a espécie à qual o animal pertence. Assumindo uma posição no âmbito do movimento vegano, o indivíduo orienta-se por um sentido positivo de expressão de si, compartilhado pela comunidade formada por outros que também assumem a perspectiva da ética animal não-antropocêntrica como eixo existencial de seu projeto de vida. Olhar os interesses animais com o mesmo respeito com que se olham os interesses humanos exige admitir para si mesmo e afirmar publicamente que a justiça genuína não será alcançada enquanto permanecer amordaçada e algemada por linhas divisórias tirânicas que desqualificam o valor inerente à vida de espécies diferentes da nossa.
A convicção que ilumina a atitude vegana é a de que não se pode ser ético e ao mesmo tempo negar que o bem próprio de outros seres vivos importa para eles, tanto quanto importa o nosso, para nós. Pensar com essa clareza conceitual motiva a agir em prol da construção de um modo de vida que afirma os direitos animais, ecossistêmicos e humanos, sem que, para cada um desses âmbitos tenha-se que forjar uma ética antagonista às demais. Nossa moralidade tem sido pautada até o presente momento sobre uma espécie de tricotomia moral: ela nos ensina a distinguir e discriminar interesses animais e de ecossistemas naturais, ao priorizar e privilegiar os interesses humanos, como se os humanos não fossem constituídos de tecidos, necessidades orgânicas e interesses naturais da mesma ordem em que o são os outros animais.
Ainda que, por um lado, a atitude vegana requeira um conceito claro da finalidade para a qual a ação é orientada, qual seja, resguardar o bem da vida, para todo indivíduo que a vive, sem especismos eletivos, tal radicalidade não inclui a proposta de que o veganismo deva impor-se como um modo de vida aos demais. Cada um de nós tornou-se vegano motivado por ideias, convicções e exemplos recebidos, sem imposição, do legado social e pessoal contra hegemônico. Em vez do padrão autoritário e conservador que tem caracterizado a moralidade até os dias de hoje, o veganismo adota um padrão não impositivo nem proibitivo, embora sua atitude siga com firmeza e coerência a prescrição inerente ao princípio ético fundamental da não-violência contra quaisquer indivíduos vivos.
Reconhecer, à própria biografia, que o uso de produtos de origem animal está definitivamente interditado, é uma conclusão natural para quem não admite que o bem-estar, a felicidade, o prazer ou qualquer outro benefício pessoal na vida, sejam alcançados à custa de dor, sofrimento, privação de liberdade e morte de outros, não importando o formato no qual esse outro aparece na esteira da vida.
Antes de seguir simplesmente a corrente vegana, cada indivíduo precisa entender o propósito dessa escolha, seu desdobramento e consequências. Sem compreender que o veganismo visa exclusivamente a libertação animal de todas as formas de exploração, uso, abuso e assassinato praticadas por humanos, não há uma atitude vegana genuína. Mas, achar que essa conquista será obtida de mão-beijada fere a intuição. A cultura na qual veganos têm que viver é absolutamente animalizada, no sentido exposto acima.
A decisão de tornar-se vegana ou vegano implica disponibilizar-se para enfrentar a própria formatação moral e os embates inevitáveis no âmbito da família, da escola, da atividade profissional e das demais práticas sociais, incluindo nelas o hábito de sair com amigos para comer fora, comprar presentes, organizar festas de final de ano, de aniversário, divertir-se e até mesmo escolher uma profissão.
Entender a natureza do ideal vegano como prescritiva, no sentido ético de ordenar as próprias ações à luz de um princípio moral válido no âmbito da própria biografia, mas não impositiva nem proibitiva à biografia alheia, e compreender que essa natureza deve nortear as ações educativas que visam orientar os demais para a tomada de decisão de tornar-se vegana ou vegano, é um desafio para todos os que ora se reúnem para fundar a Sociedade Vegana. A prescrição maior à qual todos estamos submetidos, a partir da qual as demais serão acatadas, é estabelecida, na Sociedade Vegana, não por fulano ou sicrano, pois isso caracterizaria autoritarismo e impositivismo, pelo princípio ético universal da não-violência, acompanhado da regra da coerência moral pessoal com tal princípio, e da disposição de fazer com que ele ilumine decisões pessoais e grupais a partir desse momento.
Para qualquer ser vivo, a maior violência que se pode cometer é tirar-lhe a liberdade de mover-se para prover-se seguindo o modo que melhor se adequa ao alcance do bem que lhe é próprio. Por isso, a defesa dos direitos animais passa inevitavelmente pela libertação deles de todas as formas de privação da liberdade à qual estão condenados no sistema que os torna objetos de propriedade humana. Não são os veganos quem proíbem outros de usarem animais como se fossem coisas descartáveis. Quem o faz é o princípio ético que todo humano admite como válido quando seu interesse em não ser sequestrado, usado, explorado e assassinado está em jogo. Por submeter-se ao princípio ético, o movimento vegano admite que tal princípio prescreve certas ações, e proscreve outras.
Ao submeter-se a um princípio ético de tal envergadura, o vegano sabe que deve manter-se coerente. Não pode levantar o princípio como escudo para defender-se da violência de outros humanos contra si, e baixá-lo para melhor poder praticar a violência contra outros animais.
Se o ideal normativo maior que prescreve nossa atitude em relação a animais de outras espécies não admite a propriedade sobre sua vida, seu organismo ou quaisquer partes e elementos extraídos e derivados deles, então ele prescreve absolutamente o princípio da não-violência contra eles.
A escravização de humanos foi abominada há quase dois séculos. Para fazer frente ao sistema das práticas institucionais que a fomentava, foi necessário um movimento político abolicionista. A violência da escravização de animais para fins humanos requer um movimento semelhante àquele, de envergadura incalculavelmente maior, pelo número de implicados nela. Semelhante, porque, nesse caso, as vítimas da apropriação não podem libertar-se, não podem juntar forças ou organizar-se para enfrentar a instituição da escravidão. Incalculavelmente maior, pois, no caso da abolição do uso de animais, estamos diante de algo espantosamente disseminado em todas as mentes humanas. O uso de animais não-humanos para atender interesses, necessidades e negócios humanos perpassa todos os âmbitos da produção e consumo de mercadorias e serviços.
A luta vegana não será travada contra inimigos externos, os tradicionais representantes do sistema institucionalizado de escravização de animais, interessados nos lucros que ela representa. A desanimalização de nosso consumo terá que enfrentar a matriz cognitiva e moral instalada em nossas próprias mentes. Formadores de opinião e educadores veganos devem estar cientes disso, e aprender a superar tal matriz cognitiva e moral em si mesmos, desdobrando as pregas nas quais a animalização dos benefícios obtidos pelos humanos tornou-se natural. Ao mesmo tempo, devem indicar caminhos para que outros também possam se desfazer desses hábitos arraigados. Produzir meios para que humanos mal-acostumados à escravização dos animais possam entender o erro moral em se viver às custas deles e tomar a decisão de abolirem de suas vidas os hábitos de consumo que fomentam tais práticas é tarefa central para os que ingressarem na Sociedade Vegana.
O princípio da não-violência prescreve a abolição de todas as formas de destruição praticadas contra seres vivos: mental, verbal e institucional; em outras palavras, a abolição de toda emoção negativa que envolva agressão contra qualquer ser capaz de sentir dor e sofrer; a abolição do uso de argumentos que justificam causar dor e sofrimento a qualquer ser senciente para servir a qualquer propósito humano; a abolição de todas as práticas individuais e institucionais de inflição de dor e sofrimento a esses seres, incluídos os da espécie humana. Ser vegano, portanto, implica em enfrentar o desafio de fazer uma faxina geral e profunda nos próprios conceitos, em erradicar qualquer emoção voltada à destruição dos interesses ou da vida de qualquer animal senciente, e a desassinar o contrato em vigor que nos autorizou moralmente a animalizar, isto é, a fazer uso dos animais, para quaisquer propósitos humanos.
Desdobrar as pregas da moralidade na qual estamos plissados requer coragem e persistência. Quando julgamos ter alcançado um patamar razoável de abolição de produtos de origem animal que antes compunham a cesta básica de nossa aquisição diária, somos confrontados com o fato de que quase todos os produtos da indústria química usados para confeccionar alimentos processados, tecidos, calçados sintéticos e outros itens do uso diário contém ingredientes produzidos com componentes derivados ou extraídos de animais.
A tarefa de desdobrar continuamente as pregas nas quais esconderam de nós a imagem de nossa moralidade animalizada é árdua. Ela representa um embate mental, emocional, espiritual, político, econômico e moral com os padrões ou conceitos forjados em nossa própria mente. A natureza positiva do ideal vegano pode ser melhor expressada na orientação constante que oferecemos às pessoas, na investigação ininterrupta que fazemos dos labirintos pelos quais se espalham em nossa mente conceitos e valores que ora nos dispomos a desanimalizar.
O que melhor um vegano pode fazer para mudar a moralidade vigente, é agir de forma firme e serena nessa busca. O exemplo de atitude vegana na própria biografia é o melhor legado que se pode deixar aos que nos rodeiam e aos que virão em seguida com tal propósito. Impor, ou proibir, não resultará em benefício para os animais que ora se encontram à espera da libertação. Argumentar com firmeza e lucidez, mantendo o princípio da não-violência e o propósito de abolir todo especismo eletivo como metas a serem alcançadas, fazem parte do caráter vegano. Radicalidade, nesse caso, não pode ser confundida com autoritarismo ou impositivismo.
Mas, para que esses três conceitos não sejam confundidos é preciso manter clara a linha divisória que separa as ações morais voltadas à defesa dos animais, impedindo, especismos eletivos, por exemplo, que certos tipos de animais recebam consideração, ao mesmo tempo em que se omite que outros da mesma espécie, mas de gênero distinto continuem a ser escravizados para atender aos negócios humanos, como é o caso de defender a abstenção da ingestão de carnes e silenciar sobre a ingestão de laticínios.
Pode intrigar a tese que defende a natureza prescritiva da ética vegana sem defender que ela seja impositiva ou proibitiva. Crer que prescrições, e não imposições e proibições, sejam o melhor caminho para uma educação moral genuína, produz certa ansiedade. Quem proíbe os humanos de fazerem certas coisas, ou impõe a eles rever os conceitos sobre os quais assentam sua moralidade, não são os veganos, é o princípio ético da não-violência, do respeito pela autonomia dos seres sujeitos de suas vidas, de quem jamais deveríamos ter tirado esse estatuto, em outras palavras, a quem jamais deveríamos ter escravizado.
Ainda que precisemos ser incisivos em nossos argumentos a favor de práticas coerentes para a abolição do uso de animais em quaisquer itens do consumo diário, não precisamos ser autoritários. A argumentação coerente e consistente tem sido acusada de, ou confundida com, autoritarismo. Cai-se, assim, no relativismo moral sob o qual padecem todas as espécies de seres vivos. Confunde-se permissividade com não-autoritarismo. Nessa lógica, o valor da vida dos animais torna-se relativo ao padrão dos interesses e negócios humanos que sofrem danos caso seja abolida a escravização deles. Não ser autoritário não é o mesmo que ser permissivo. Não se admite na própria biografia certos hábitos de consumo. Argumenta-se em público para fundamentar a escolha pessoal. Sugerem-se práticas substitutivas para ajudar outros indivíduos ou grupos a erradicarem o uso desses produtos e serviços. Não se faz as coisas pela metade. Se comer um certo tipo de alimento implica em causar dor e sofrimento aos animais, usados para extração da matéria desse alimento, e se isso não pode ser moralmente defensável, então, pela mesma razão, não é defensável comer qualquer outro tipo de alimento que tenha semelhante origem.
Ao prescrever uma atitude ou ação, o sujeito que o faz admite em si mesmo a capacidade racional. Acatar uma prescrição ética implica em admitir um princípio como universalmente válido, ainda que o modo prático pelo qual esse princípio venha a ser seguido possa variar de cultura para cultura ou de época para época. Admitindo sua própria racionalidade, isto é, admitindo que tem liberdade e inteligência para compreender, reconhecer e seguir uma norma moral, por reconhecê-la como válida, o sujeito imediatamente admite que o mesmo deve valer para os demais que o rodeiam. Prescrever o ideal vegano, nesse sentido, implica em admitir que cada um, munido das melhores informações e com domínio da perspectiva ética animalista, pode chegar à conclusão de que os animais não foram criados para atender aos caprichos e negócios humanos, e sim para viverem espécies de vida que têm singularidade em suas semelhanças e diferenças quando comparada às outras, tanto quanto a tem nossa própria vida.
Quando entendemos racionalmente o por quê de algo ser certo ou errado, queremos que os demais seres racionais imediatamente também o entendam. Mas, a construção da natureza ética nos humanos não se dá num passe de mágica. Mesmo quando temos clareza ética sobre uma série de questões morais, ainda assim relutamos em seguir aquilo que nossa razão nos dá por certo ou verdadeiro. A teia na qual nos enredamos, ao forjarmos o modo de vida antropocêntrico e hostil aos interesses de outros animais, coloca-os na condição de objetos de propriedade. Abrir mão da condição de proprietário e senhor requer força, coragem e desprendimento. Esse é o modo da libertação humana.
O modo de vida vegano precisa ser seguido com plena consciência de que estamos atados à mesma teia na qual os conceitos e valores que desprezam, hostilizam e destruem a liberdade, a autonomia, o bem próprio e a vida dos animais são mantidos por todos nós. O veganismo requer paciência e lucidez, mas, sobretudo, coragem para o enfrentamento. Não para confrontar inimigos externos, mas para enfrentar o próprio padrão mal-acostumado de usar animais para atender às necessidades humanas, não importa se triviais ou cruciais.
Para ser vegano sem ser impositivo, há que fomentar virtudes esquecidas nos tempos atuais. Uma delas é o senso de justiça para além da barreira especista e sexista antropocêntrica. Com tal virtude chegamos ao respeito pelos interesses singulares de seres de outras espécies, e a eles concedemos finalmente a atenção amorosa e a compaixão éticas, requeridas dos defensores da libertação animal que atendem ao que o princípio da não-violência racionalmente prescreve. Sem aquelas virtudes a energia se esvai e o ativismo político em defesa dos direitos animais acaba por não trazer no curto prazo os resultados ansiados.
A par com a virtude no plano individual, os veganos precisam aprender a conviver com os demais, nem sempre antenados na mesma frequência mental e emocional deles. Cada vegano compõe um mosaico de valores e interesses com personalidade única, que encontra um elo comum, o da defesa dos direitos animais e da abolição de todas as formas de sua exploração e morte. Para além da afinidade ética, veganos cultivam também outros interesses. O veganismo não configura, assim, uma ortodoxia existencial. Por isso, les gôuts des autres (o gosto dos outros) e suas preferências precisam ser reconhecidos. Fingir que não temos idiossincrasias atrapalha nossa comunicação e prejudica o vigor que nosso objeto comum, a luta pela abolição de todas as formas de escravização de animais de quaisquer espécies, requer.
A vida nasce livre. Em qualquer que seja seu design, um direito fundamental lhe assiste: o de prover-se nos moldes específicos, orientada pela mente particular que tal modo cria. Não importa o formato no qual o indivíduo nasce. A aparência pode ter muito peso para uma estética especista, para uma moral especista que não reconhece valor a não ser no que tem semelhança conosco, mas não tem peso algum para a ética animalista biocêntrica, pois essa tira o agente moral do centro das atenções. Em seu lugar coloca aqueles que sofrem os desmandos do domínio humano tirânico. Esses são o fim último para o qual a ação moral deve tender.
Os animais não são objetos de propriedade, embora por milênios tenham sido tratados e definidos como tais. Isso se deve ao fato de que, quem os citou pela primeira vez na história como objetos de propriedade, existindo para atender aos negócios, interesses e necessidades humanas (Código de Hamurabi e as Leis de Eshnuna), não encontrou oposição alguma à ideia. De algum modo, os que estavam enredados na teia do poder econômico que o uso de animais permitia erigir, eram os mais interessados em desqualificar o valor inerente à vida de animais e de humanos escravizados. Humanos destituídos de propriedade, e, portanto, do poder que ela confere, estavam e ainda estão na exata condição das demais espécies animais escravizadas. À esses a palavra ou a expressão de sua forma específica de viver não é concedida. Deles, toda a liberdade foi tirada.
Hoje, a história mostra outra face. Já há quem se oponha frontalmente contra o uso de animais, mesmo sabendo que tal uso não será extinto do dia para a noite, de forma mágica, sem requerer trabalho e dedicação dos que a ele se opõem. Os que se posicionam e expressam de forma vegana não estão mais na condição de escravos, embora também não estejam na de senhores. Abdicar do poder tirânico exercido por milênios sobre os corpos, a sexualidade e a vida alheia, é a forma de libertação que os veganos abraçam.
Cabe justamente aos que não ocupam nem a posição de senhores, nem a de objetos da propriedade, provar que é possível abdicar das práticas institucionalizadas de escravização sexual dos animais não-humanos e viver dignamente a vida de um humano. Não esperemos que os animais nos provem isso, nem aguardemos que seus abusadores sexuais o reconheçam. Isso seria o mesmo que esperar que perdessem o gosto de capitalizar lucros animalizados. Somos nós, cidadãs e cidadãos livres da propriedade sobre a vida e a sexualidade de outros seres vivos, que devemos produzir a desanimalização das práticas e negócios humanos.
O projeto de criar uma cultura não animalizada, livre do emprego de animais vivos ou mortos, e sem a dependência de derivados de seus corpos, vivos e mortos, enfrenta o desafio de abolir a produção industrializada de animais para consumo humano, experimentos, lazer e suprimentos. A objetificação de animais só é possível pela dominação sexual que os humanos exercem sobre eles, em outras palavras, pela mecanização do processo reprodutivo.
A natureza reprodutiva de bovinos, suínos, avinos, caprinos e equinos não permite sua reprodução em números que batem recordes em relação a toda reprodução animal conhecida ao redor do planeta. Somente para a exploração da indústria de laticínios, os Estados Unidos e o Brasil contabilizam juntos uma população de aproximadamente 500 milhões de vacas, escravas sexuais, inseminadas mecanicamente ao longo dos 6 a 8 anos de gestação, parto e lactação aos quais são condenadas até exaurirem. Destino melhor não é garantido às galinhas exploradas sexualmente pela indústria de ovos. Ao cabo de 4 anos estão esgotadas. Tanto as galinhas quanto as vacas, exploradas sexualmente pela indústria ovo-lacto, acabam nos matadouros. Não se pode adotar o modo de vida vegano e ao mesmo tempo ignorar a escravização sexual de algumas espécies animais, mantendo-se o especismo eletivo sexista, enquanto se condena a escravização de outras.
A abolição da escravização animal passa inevitavelmente pela abolição das práticas de escravização sexual animal. Não havendo reprodução mecanizada, não há como forçar a nascerem os bilhões de seres produzidos pela indústria de carne, leite e ovos.
O projeto de vida vegano visa ensinar ao ser humano a prover-se de modo não-animalizado, quer dizer, a obter benefícios em sua vida, tais quais saúde, bem-estar e realização profissional, sem que isso represente malefício para os animais. Esse é um desafio à inteligência humana. Enfrentando-o, ampliamos nossa criatividade. É preciso inventar modos veganos de comer, vestir-se, manter-se saudável, curar doenças, divertir-se e processar itens sem componentes derivados de animais.
Se há humanos dispostos a abolirem o consumo de todo e qualquer uso de animais, já não há um poder absoluto, hegemônico e inquestionável de propriedade sobre eles. Embora ainda sejam poucos os humanos que abdicam de usar animais e produtos derivados deles, esses poucos já marcam sua presença no mundo. Formamos uma Sociedade Vegana, uma comunidade dos que traçam sua biografia em torno do eixo da libertação dos animais e da defesa deles como sujeitos de direitos fundamentais, daqueles direitos vinculados à vida, à liberdade e à condição de vulnerabilidade na busca do próprio bem a seu próprio modo.
Se tínhamos algo a que se podia denominar “movimento vegano”, embora não houvesse sido organizado, agora juntamos os projetos e experiências individuais e formamos um leque de ações destinadas à redefinição dos padrões morais nos quais todos fomos formatados. O movimento vegano é, nesse sentido, um movimento ético, político e cultural de proposição e construção de uma cultura moral na qual os animais não serão mais considerados objetos de propriedade, mas, sujeitos de sua vida (Tom Regan). Na condição de sujeitos, cabe a eles direitos fundamentais, tais quais os atribuídos a qualquer humano: o direito à vida, o direito à não privação da liberdade, o direito à reprodução, o direito ao movimento necessário para o provimento nos padrões individuais e próprios de cada espécie. A privação, eticamente injustificável, de qualquer desses direitos, viola a condição de sujeitos de suas vidas, tão inerente à vida animal quanto o é à humana.
Isto posto, resta lembrar que a jornada vegana mal começou, se contamos a rede quase infinita de práticas institucionalizadas de exploração dos tecidos animais para fabrico de itens do consumo humano. Até aqui fizemos o que estava ao nosso alcance, cada um a seu modo, para difundir a ideia de que algo precisa ser revisto no que diz respeito ao estatuto de objetos de propriedade ao qual animais não-humanos estão condenados.
Temos nos abstido de comer alimentos animalizados (industrializados a partir de matéria de origem animal), de usar roupas e acessórios animalizados (fabricados a partir de matéria prima de origem animal), de comprar produtos de higiene pessoal e de limpeza animalizados (compostos a partir de derivados de origem animal e testados em animais), de visitar espetáculos animalizados (montados usando animais como figurantes), de frequentar espaços animalizados (atividades que divertem humanos às custas do sofrimento dos animais). Embora cada um de nós tenha feito tudo isso, ou um pouco disso tudo, individualmente, ainda não nos juntamos para começar a fazer as mesmas coisas de modo coletivo, isto é, político.
Estamos criando nesse momento uma nova cultura. Ao fazermos as coisas esclarecidos na presença uns dos outros, o fazemos com mais poder de disseminação através dos meios de comunicação de massa. Mas, continua a ser essencial para a manutenção dessa energia, fazer tudo visando abolir a escravização dos animais, e conquistar as pessoas para fazerem parte desse projeto ético, cada. Conforme dito acima, o movimento vegano no Brasil dá agora seu primeiro passo, um passo que vai além da difusão do vegetarianismo restrito à questão alimentar.
A partir desse momento, estamos juntos no projeto de remover da consciência humana todo e qualquer traço antropocêntrico que evoque animais como objetos de propriedade e humanos como seus senhores. Tirando-nos do lugar de senhores, tiramos os animais do lugar que os torna vulneráveis à hostilidade, desprezo e destruição, nos moldes do padrão cultural e moral animalizado.
Desafios do modo de vida vegano
1. A paz e não-violência para os animais é o objetivo final buscado pelo vegano e vegana. Qualquer benefício pessoal que possa resultar dessa nova forma de viver é consequência da atitude vegana, não sua finalidade.
2. A justiça social e ambiental são meios para que se alcance a paz e não-violência para todos os seres vivos. A defesa da natureza e sua preservação implica no cuidado atencioso de todas as formas de vida, e na abstenção de tudo o que implica escravização de animais.
3. Os direitos fundamentais animais precisam ser defendidos com a mesma tenacidade com a qual se defendem os humanos.
4. A saúde humana precisa ser assegurada sem a exploração de animais e sua submissão a experimentos.
5. A higiene, limpeza e beleza humanas não podem ser obtidas às custas da vida, do bem-estar e da desfiguração de animais.
6. A pele e a preservação da intimidade do corpo humano não devem ser protegidas às custas da tortura e morte de quaisquer animais.
7. Os nutrientes para o organismo humano devem ser assegurados por alimentos estritamente vegetais, descartando-se a hipótese de usar animais para prover matéria alimentar humana.
8. Da mente humana devem-se erradicar as ideias, conceitos e argumentos que justificam e fomentam o uso de animais. Se não se usa matéria animal para comer e vestir, também não se a usa para falar.
9. Os produtos à venda no mercado mundial devem ser desmontados em sua composição, para que se possa ter ciência dos ingredientes que compõem a alimentação, o vestuário, adornos, cosméticos, material de limpeza, higiene, e todos os produtos da indústria química, das tintas aos componentes high tech, do lazer aos esportes.
10. Aos jovens se deve dizer a verdade sobre a exploração e escravização dos animais. Dos mais velhos se deve cobrar a indiferença em relação ao fato de terem se deixado levar pela propaganda no que diz respeito à melhor forma de prover as necessidades da família.
11. À tradição alimentar e moral animalizada devemos dar um adeus. Desassinar o contrato de expropriação da vida animal é nosso desafio.
12. Dos governantes não há o que esperar na defesa dos direitos fundamentais dos animais, pois a maior parte deles é eleita pelo agronegócio. Via de regra, todo governo é movido pelo capital. Quando se trata de atender à vida em desgraça, especialmente se a desgraça afeta milhões de indivíduos, os governos não sabem o que fazer. Isso vale para a desgraça dos milhões de humanos abatidos por forças às quais não podem fazer frente, tanto quanto para a de bilhões de animais abatidos por forças igualmente avassaladoras.
13. Para tornar-se vegano num mundo animalizado são necessários todos os anos restantes de nossas vidas. Quando nos damos conta de que algum produto ou serviço é oferecido às custas da escravização ou morte de animais, tal produto ou serviço precisa ser dispensado para sempre.
14. O dever positivo direto de respeito aos direitos animais não nos autoriza a negociar unilateralmente nosso padrão de vida contra o direito deles de terem sua vida boa.
15. Ser vegano não é algo estático, de fato não é sequer um estado de ser. É um movimento contínuo, uma luta contínua, não contra alvos externos, mas contra alvos internos. É uma maneira de passar a limpo os arquivos mentais que nos conduzem intuitivamente em nossas escolhas diárias. Ser vegano implica em abrir mão das intuições morais herdadas da tradição e pôr no lugar delas um princípio ético do qual não se abre mão na hora de comer, de ir para a cama, de divertir-se e de instruir-se.
16. Surpresas estão reservadas para os que se tornam veganos. Por detrás de cada dobra de tecido alimentar ou do vestuário, de cada item ou componente dos objetos de uso diário esconde-se a história da exploração, sofrimento e morte de animais não-humanos. Ser vegano é ter disposição para examinar tais pregas e alisá-las uma a uma. Enquanto já nos despregamos de dez ou quinze itens que antes constituíam nosso consumo diário, há quem sequer tenha se despregado de um ou dois deles, carne e laticínios, por exemplo.
17. Vivendo no mesmo plano terrestre dos outros humanos e tendo sido formatados na mesma matriz cognitiva e moral deles, precisamos aprender a olhar para o que eles ainda não fazem, como se fôssemos nós quem ainda não houvéssemos feito coisa alguma. Em vez de apontar para o outro, precisamos apontar para nossas práticas. Se somos coerentes, outras pessoas farão dela um espelho. Se fracassamos, quem mais tem a perder com nosso fracasso são os animais. É preciso abolir a ética animalizada antropocêntrica e em seu lugar construir um modo de vida com base numa ética genuinamente animalista.
Sônia T. Felipe
sonia.felipe@sociedadevegana.org Este endereço de e-mail está protegido contra spambots. Você deve habilitar o JavaScript para visualizá-lo.
Doutora em Teoria Política e Filosofia Moral, pela Universidade deKonstanz, Alemanha (1991). Co-fundadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Violência (UFSC, 1993). Ex-voluntária do Centro de Direitos Humanos da Grande Florianópolis (1997-2000). Autora dos livros, "Ética e Experimentação Animal - fundamentos abolicionistas" (Edufsc, 2006); "Por uma questão de princípios" (Boiteux, 2003). Co-autora de "A violência das mortes por decreto" (Edufsc, 1998), "O corpo violentado" (Edufsc, 1998),"Justiça como Eqüidade" (Insular, 1998, esgotado). Colaboradora nas coletâneas, "Instrumento Animal" (Canal 6, 2007), "Éticas e políticas ambientais" (Lisboa, 2004), "O utilitarismo em foco" (Edufsc, 2007), "Filosofia e Direitos Humanos" (Editora UFC, 2006), "Tendências da ética contemporânea" (Vozes, 2000). Autora de dezenas de artigos editados nos sítios: http://www.svb.org.br/; http://www.pensataanimal.net/; e na Revista Ethic@ (http://www.cfh.ufsc.br/ethic@/). Coordena o Laboratório de Ética Prática, do Departamento de Filosofia da UFSC, é professora e pesquisadora do Programa de graduação Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas, da UFSC. Membro Permanente do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e do Bioethics Institute da Fundação Luso-americana para o Desenvolvimento, Lisboa. Coordena o Projeto de pesquisa: Feminismo ecoanimalista: contribuições para a superação da violência e discriminação especistas, revisando a literatura sobre defesa de animais e ecossistemas produzida por mulheres (Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas, UFSC, 2009-2011).