quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Uma introdução às questões de saúde entre os Guarani-Kaiowá. Um olhar psi partindo da expedição Marcos Verón

por Alessandro Campos

Estamos todos vivendo um momento único na trajetória do povo brasileiro. Uma subjetividade coletiva marcada por histórias de injustiças e memórias apagadas de uma jovem nação, mas ainda assim com uma força cultural e espiritual singular muito pouco comparada no mundo. Por um lado à promessa e a real melhora economica e de consumo de uma determinada esfera da população, mas por outro as ainda contraditórias e cruéis realidades de parte daqueles que vivem nesse território brasileiro que pouco conhece o significado de reparação e reconhecimento. 
É nesse cenário que se inscreve a subjetividade dos povos indígenas, e nesse caso, dos guaranis kaiowás. A realidade do povo guarani-kaiowa não faz parte das estatísticas governamentais daqueles que mudaram para melhor sua condição politica, econômica e social nos últimos anos. Contrariamente aos dados do Estado, o povo guarani-kaiowa vive um permanente genocídio com implicações diretas a saúde de seus membros e daqueles que estão ligados a sua história. No que diz respeito a promoção e o impedimento de saúde dessa população, em muitos aspectos são índices alarmantes se comparados aos do restante do Brasil, particularmente com focos na saúde mental.
        Em matéria publicada pelo Estado de São Paulo em 24 de fevereiro de 2011 de Lisandra Paraguassu, Ligia Formenti e Rafael Moraes Moura, intituladaTaxa de suicídio no Brasil sobe 17% em 10 anos, puxada por indígenasrevela a partir do Mapa da Violência/2011, do Instituto Sangari e o Ministério da Justiça, a condição indígena nesse território. Apontam que "Estimativas realizadas a partir de dados de população da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do número de suicídios indígenas registrados pela SIM/MS, a taxa nacional de suicídios indígenas seria de 20 para cada 100 mil índios (quatro vezes a média nacional)", afirma o relatório. "Se essa é a média nacional, a população indígena encontra-se distribuída de forma muito desigual no território. Tomando os dois estados que registram 81% dos suicídios indígenas - Mato Grosso do Sul e Amazonas -, teríamos, pelos dados de população indígena da Funai, que o Amazonas apresenta uma taxa de 32,2 suicídios para cada 100 mil indígenas (seis vezes a média nacional) e Mato Grosso do Sul, de 166 suicídios por cada 100 mil indígenas (mais de 34 vezes a média nacional). Essas estimativas se referem à população total.". E conclui: "Tomando especificamente a população indígena jovem, teríamos para o Amazonas uma taxa de 101 suicidas para 100 mil jovens e de 446 para Mato Grosso do Sul, índices que não têm comparação nem no contexto internacional, entre os países com taxas de suicídio consideradas trágicas. Não resta dúvida de que, neste campo, deveríamos ter condições de formular, de forma rápida e emergencial, políticas e estratégias em condições de enfrentar esse flagelo".
         Igualmente para podermos problematizar melhor esse contexto, como apontou documento publicado pelo Conselho Federal de Psicologia (PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2011, 31 (3), 504-517), de autoria dos pesquisadores Sonia Grubits, Heloisa Bruna Grubits Freire e José Angel Vera Noriega, intituladoSuicídios de Jovens Guarani/Kaiowá de Mato Grosso do Sul, Brasil,O Estado de Mato Grosso do Sul possui a segunda maior nação indígena do Brasil, com 66.963 índios, de acordo com os últimos dados da Fundação Nacional de SaúdeFUNASA (2008), dos quais 40.245 são Guarani/Kaiowá. Ainda segundo a FUNASA, ocorreram 410 suicídios nessa nação de 2000 a agosto de 2008. As tentativas de suicídio não consumadas, porém, não foram registradas. A maioria dos suicidas são homens, 65% na faixa etária de 15 a 29 anos, e o método mais frequente é o enforcamento. Neste trabalho, apresentamos conclusões de estudos referentes às causas do problema, destacando-se a concepção de feitiço, com implicações nos conceitos de instinto de vida e de morte, inconsciente coletivo e sugestão; também o processo de confinamento compulsório ao qual o grupo vem sendo submetido, com superpopulação das aldeias, imposição de crenças, valores e lideranças estranhos a sua cultura são citados como fatores causais. Sugerimos, além da revisão urgente da política governamental em relação às terras indígenas, uma retomada da identidade étnica como forma de afirmação e a reorganização do grupo Guarani/Kaiowá.
Passamos a considerar então a atuação e a maneira que observam os guaranis kaoiwas a FUNASA, órgão do Ministério da saúde, responsável pela promoção de saúde nos territórios guarani. Não foi muito claro o papel exercido por eles, e ao escutarmos os relatos nos territórios, acabamos por ter a impressão de uma atuação bastante dúbia nas aldeias em que esteve presente a Expedição. Diz em sua pagina de apresentação na internet queBaseia-se, entre outros princípios, no diálogo, reflexão, respeito à cultura, compartilhamento de saberes, ação participativa, planejamento e decisão local, participação, controle social, sustentabilidade sócio-ambiental, mobilização social e inclusão social.Infelizmente não podemos corroborar a partir de nossa experiência essa prática. Os guaranis-kaiowas são subjugados a um pensamento clínico limitado, sem diálogo adequado com suas concepções de saúde. A lógica biologicista é imperativa, preocupada apenas com sintomas, pouco observa a real necessidade das aldeias. A falta de profissionais para a demanda das aldeias também agrava o precário acompanhamento que é muito mais paliativo do que o exercício de uma politica pública de prevenção. Como se não fora suficiente a degradação ambiental, o confinamento, a escasses de recursos como água e comida, sua cosmovisão que possui a função de organizar a subjetividade individual e o corpo social, é permanentemente golpeada e destruida por grupos religiosos que não respeitam suas crenças, jagunços e por um Estado negligente e conivente com a violação de direitos humanos.
          A expedição Marcos Verón pode presenciar quanto aos aspectos da saúde, tanto para sua promoção como de sua absoluta negação, uma realidade permanentemente tensa, angustiante, com constante ameaça à vida. As consequências de um cotidiano que não se permite organizar o futuro, enlutar as perdas do passado e resignificar o presente, indicam um agravamento do sofrimento mental. Tragicamente se referem e acumulam as histórias de perda afetiva, invisibilidade, negligência, extermínio e tortura. Esse relatório busca organizar o que foi visto e experimentado pela equipe da expedição em 7 diferentes aldeias e encontrar um entendimento para essa realidade, compreendendo suas consequências e a partir disso propor um encaminhamento para a superação desses desafios em direção a uma saúde digna e de reconhecimento aos valores e necessidades do povo guarani-kaiowá. Nossa finalidade é de oferecer uma escuta desse sofrimento e a partir do reconhecimento de sua palavra, apoiar a legitimidade de suas reivindicações.
        Em determinados momentos as condições insalubres e de impedimento de uma saúde física e mental adequada se repetem em todas as aldeias visitadas pela expedição. São presenças do terror e da morte, da tortura e do desespero, acompanhando cotidianamente crianças, idosos, mulheres e homens com poucos recursos materiais, e menos ainda de apoio e reconhecimento de sua cultura. Ainda assim agarrados às suas tradições e memória, tratam de localizar no tempo presente a chance de construir uma subjetividade mais livre, sem medo e fora do ressentimento.
          Buscaremos olhar por cada território e cada aldeia suas condições para promoção de saúde e as violação de direitos para ter acesso a ela.
Continua...


Fontes



http://www.scielo.br/pdf/pcp/v31n3/v31n3a06.pdf

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