continuação da postagem anterior.
A dificuldade para conhecer.
A
trajetória para conhecer não é, paradoxalmente, uma tarefa tão simples na
contemporaneidade. Por um lado as novas tecnologias possibilitam acessos a uma
quantidade de informação nunca antes conhecida. Isso coloca a todos uma
necessidade de saber avaliar e separar o que importa e o que não interessa
nesse oceano de ideias. Uma qualidade crítica precisa ser desenvolvida onde os
sujeitos não se afundem em sofismas intermináveis e promessas pouco
realizáveis. O capitalismo é sofisticado, mas suas funções básicas não
desapareceram. Podemos por exemplo no capitalismo, conhecer e estar
praticamente em todos os lugares com a ilusão de pertencermos a eles: não há
identidade que não se possa ter, um território que não possa visitar ou mesmo
viver, mas o que ele não revela é que para alguns desses personagens, para
alguns dos supostos novos papéis sociais, para algumas dessas terras e
territórios, é necessário se garantir[1].
Garantir em si mesmo e nos outros, que pode estar alí e pertencer a esse lugar
e história. É imprescindível a representação de si mesmo. As afinidades são
fundamentais para a autodeterminação: por exemplo, o lugar das relações de
parentesco ou vizinhança (Castro, 2006). A história das cores pode ser
compreensível para nós, mas para um pessoa de Chiapas, é dada uma possibilidade
maior de sentido, exatamente por seu pertencimento. Os laços histórico-culturais
como maneira de evitar o genérico e superficial, colaboram ao conceito de
autodeterminação e sua prática, exatamente por que quem se autodetermina
precisa se garantir.
A
limitação do capitalismo, e a evidencia de sua fragilidade, é dada na
constatação de que o repertório do pertencimento demanda tempo para ser
aprendido. As relações vão sendo construídas pelo reconhecimento que a presença
oferece. É verdade que estar presente não garante o reconhecimento, mas tão
pouco é certo acreditar que reconhecer é possível sem conhecer. Primeiro se
conhece, depois se esquece, para então reconhecer (Ricoeur, 2007). O que
possibilita a passagem entre o conhecimento e o reconhecimento é exatamente o
esquecimento. Por isso pode ser difícil um lugar para o reconhecimento, afinal
sempre existem os riscos de abusos do esquecimento, e nesse lugar ninguém se
garante. Mas não é apenas o capitalismo que se interessa pelos excessos do
esquecimento, a tradição também o pode fazer. Como? Ela o faz quando mantém
privilégios, quando busca apenas a imaginação, na manutenção da mesmice, na
repetição da dominação. E quem pode se garantir numa relação desigual?
A
história que o subcomandante Marcos nos conta, a todo instante revela um
conhecer pelo mito, mas quando o associo a sua história de luta por
reconhecimento percebemos um possível lugar a ser ocupado por todos aqueles
interessados em uma crítica ao capitalismo contemporâneo. O vir-a-ser das cores
que se misturam é semelhante ao desafio das organizações sociais nos dias
atuais. Sempre pergunta, como fazer um mundo repleto de muitos mundos? “para
que os homens e as mulheres não se esqueçam que existem muitas cores e
pensamentos)”, diz a história. Um
mundo feito de apenas duas cores e uma terceira que as combina. Uma realidade
de poucas possibilidades é enfadonha e pífia, sem muitas possibilidades de
transformação. Como lembrado anteriormente por Elias Canetti, a metamorfose é
subversiva por conter a inquietação que mantém o movimento necessário para as
mudanças. O vir-a-ser precisa ser cultivado nesse movimento e ao capitalismo
nada mais desinteressante que a diferença e a memória. A colonização do mundo
da vida aprisiona o presente, onde o tempo é a repetição constante daquilo que mantém
o ser-consumidor e a alienação. Também agora encarcera o próprio futuro. Não
permitir mudar o presente é não aceitar um futuro diferente.
É
certo que as consequências daquilo que fazemos agora terão repercussões e
influenciarão nosso futuro. Em suma, sofremos hoje as decisões dos mortos de
ontem. O capitalismo predatório, as mudanças climáticas pela presença humana, a
injustiça social, entre outros desafios, são acúmulos de decisões passadas
mantidas no presente. Ao não adotarmos uma postura crítica às decisões
coletivas, reduzimos as possibilidades de soluções para os mesmos desafios. As
intervenções no cotidiano precisam considerar essa crítica da memória coletiva
para a superação das contradições de nossas relações. Nosso planejamento pede
urgência no que diz respeito ao tempo dos acontecimentos. A resistência ao
capitalismo deve considerar o tempo da aprendizagem, e essa por sua vez, novas
racionalidades. O mito nos abriga a esse esforço por não cristalizar as
possibilidades de entendimento de seus símbolos, significando que eles estão
sujeitos a reinterpretações. Ele precisa ser recontado, re-significado no tempo
longo das compreensões das diferentes gerações. Ao capitalismo importa apenas a
igualdade da superficialidade, a mesmice do cotidiano e a indiferença. Ele
busca a sofisticação da técnica, da engrenagem e dos acúmulos do capital, sem
se importar com uma memória justa.
Mas isso em um primeiro momento. Precisamos evitar os maniqueísmos, pois
também ele trata de reinventar os mitos, com o objetivo de se perpetuar. Então
como escapar disso?
A
aprendizagem para uma nova racionalidade precisa ser instigada naquilo que as
vezes consideramos absurdo, de riscos e provocações. Estes elementos emergem e
submergem frequentemente em nossas vidas, mas não desaparecem. A história do
capitalismo é de um amontoado de horror e tragédia em que se acirrou a
exploração de muitos por poucos, e da qual conhecemos muito bem. E na tradição?
O capitalismo também reivindica uma certa tradição, não? Os significados do
pertencimento quando críticos pode ser uma aposta na alternativa desse modo
único de viver. Porém, a construção dos interesses comuns na tradição necessita
de preservações específicas. Parte delas podemos encontrar em suas histórias ao
re-significar sua memória; e não basta pensar as abstrações dos mitos e na
beleza poética de suas narrativas: ele precisa falar daquilo que pode ser
emancipador na tradição.
Novamente
deparo-me com a urgência de autonomia e representação política do movimento
indígena em relação a sua própria tradição e as outras não indígenas. Isso por
que os contornos da identidade para a formação nacional são resignificados não
apenas por indivíduos, mas por grupos étnicos inteiros. As políticas de combate
a pobreza, a democratização do país, as relações entre moral, ética e política
vão adquirindo novos contornos, e a demanda por autonomia se converteu no
núcleo duro do movimento indígena no México (Navarro, 2009, p. 34). O encontro
entre o zapatismo armado e o movimento indígena pacífico abriu novas portas e
possibilidades de pensar a discussão política onde a autonomia é a base.
Fundamental entender que tem eles em comum sua independência do Estado e dos
partidos políticos[2].
De toda forma, as comunidades étnicas mexicanas, e da maioria da América
Latina, vem durante décadas vividas transformações profundas. Como bem sinaliza
Navarro (idem), a reforma agrária, a educação pública, a construção de meios de
comunicação, a presença da rádio e da televisão, o mercado, a abertura
comercial, a militarização, o alcoolismo, a prostituição, o supérfluo e a
migração estão transformando drasticamente as sociedade indígenas. Existe um
forte processo de reconstituição de novas identidades que combinam tradição e
inovação.
Nessa
relação, entre a tradição e a inovação, encontramos então espaços para a
autocrítica. Aida, mulher mazateca que nos fala com mais tempo na segunda parte
desse trabalho, reflete sobre a manutenção de sua cultura, mas também da
importância de se transformar parte do contexto em que vive. Ainda acontecem, por exemplo, episódios em que
o pai tem autoridade para vender a filha. Uma certa quantia de dinheiro é
oferecida pela “posse” da jovem que costuma ter entre 10 e 13 anos. Aida é completamente contrária a
essa prática em sua comunidade. Segundo ela, recorrer aos usos y costumbres
para justificar isso nada mais é que garantir o privilégio e a dominação (nota
de campo de 08/2011).
A
superação do ressentimento, a renovação da ética, a prática da solidariedade, a
capacidade de agregar valores, uma postura não derrotista, a resistência em
favor da vida, um consolo para a morte, uma perspectiva de justiça, a
resignação da perda, a criatividade, a metamorfose, a emancipação são fatores e
elementos concretos que podem estar numa história e passarem a ser conhecidas.
O pertencimento, que pode acontecer apoiado por histórias como essa “das
cores”, é enraizado no mito e sua capacidade de emancipação está diretamente
relacionada à crítica da tradição. São elementos contra o esquecimento e na
diminuição da dificuldade do conhecer. Porém o leitor pode questionar: “e as
histórias de dor e desespero? Aquelas de abusos e mentiras? São coisas difíceis
de conhecer, até mesmo indesejadas.” Sem dúvida que elas existem e sempre
estiveram presentes. Para isso o mito e a memória cumprem a função de
reparação. E como é que se constrói isso?
continua...
[1] No
texto de Eduardo Viveiros de Castro (2006) “No Brasil, todo mundo é índio,
exceto quem não é” ele discute o “ser” índio no Brasil. A ideia central é
responder a pergunta de “quem é índio?”. Ele pontua três momentos de tensão ao
lidar com essa questão. Primeiro, a suposta necessidade de emancipação que
existiu até os anos 70, onde os índios “ainda são indios” e precisam deixar de
ser. Esse é um estado de transição e os indigenas precisam ser integrados ao
Brasil. Segundo, as noções de comunidade e a dificuldade em lidar com o
pertencimento. Existe uma onda que banaliza o “ser indio”. Antes ele tinha que
ser integrado, agora há de ser preservado e isolado. Por fim, o lugar dos
antropologos e dos especialistas pois são eles que podem confirmar ou não as
identidades. Uma crítica as atividade daqueles que atuam como juristas e
definidores de papéis ao dizerem “quem é o quê” no mundo. Volto a falar disso
no próximo capítulo.
[2] O
exemplo de Mazatlán Villa de Flores em Oaxaca é bastante ilustrativo. Em seu
processo de autonomia, uma das decisões da Asemblea Comunitaria em 1991,
durante seu processo eleitoral, expulsou os partidos políticos do município.
Particularmente o PRI, partido criado pós revolução e que se manteve dominante
por mais de 80 anos. Depois de 20 anos dessa experiência, agora os partidos
estão voltando a se organizar nessa região (nota de campo, 07/2011). Volto a
falar desse município mais adiante.
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