domingo, 24 de junho de 2012

Preparação para qualificação

Parte II
continuação da postagem anterior.

A dificuldade para conhecer.

            A trajetória para conhecer não é, paradoxalmente, uma tarefa tão simples na contemporaneidade. Por um lado as novas tecnologias possibilitam acessos a uma quantidade de informação nunca antes conhecida. Isso coloca a todos uma necessidade de saber avaliar e separar o que importa e o que não interessa nesse oceano de ideias. Uma qualidade crítica precisa ser desenvolvida onde os sujeitos não se afundem em sofismas intermináveis e promessas pouco realizáveis. O capitalismo é sofisticado, mas suas funções básicas não desapareceram. Podemos por exemplo no capitalismo, conhecer e estar praticamente em todos os lugares com a ilusão de pertencermos a eles: não há identidade que não se possa ter, um território que não possa visitar ou mesmo viver, mas o que ele não revela é que para alguns desses personagens, para alguns dos supostos novos papéis sociais, para algumas dessas terras e territórios, é necessário se garantir[1]. Garantir em si mesmo e nos outros, que pode estar alí e pertencer a esse lugar e história. É imprescindível a representação de si mesmo. As afinidades são fundamentais para a autodeterminação: por exemplo, o lugar das relações de parentesco ou vizinhança (Castro, 2006). A história das cores pode ser compreensível para nós, mas para um pessoa de Chiapas, é dada uma possibilidade maior de sentido, exatamente por seu pertencimento. Os laços histórico-culturais como maneira de evitar o genérico e superficial, colaboram ao conceito de autodeterminação e sua prática, exatamente por que quem se autodetermina precisa se garantir.

            A limitação do capitalismo, e a evidencia de sua fragilidade, é dada na constatação de que o repertório do pertencimento demanda tempo para ser aprendido. As relações vão sendo construídas pelo reconhecimento que a presença oferece. É verdade que estar presente não garante o reconhecimento, mas tão pouco é certo acreditar que reconhecer é possível sem conhecer. Primeiro se conhece, depois se esquece, para então reconhecer (Ricoeur, 2007). O que possibilita a passagem entre o conhecimento e o reconhecimento é exatamente o esquecimento. Por isso pode ser difícil um lugar para o reconhecimento, afinal sempre existem os riscos de abusos do esquecimento, e nesse lugar ninguém se garante. Mas não é apenas o capitalismo que se interessa pelos excessos do esquecimento, a tradição também o pode fazer. Como? Ela o faz quando mantém privilégios, quando busca apenas a imaginação, na manutenção da mesmice, na repetição da dominação. E quem pode se garantir numa relação desigual?

            A história que o subcomandante Marcos nos conta, a todo instante revela um conhecer pelo mito, mas quando o associo a sua história de luta por reconhecimento percebemos um possível lugar a ser ocupado por todos aqueles interessados em uma crítica ao capitalismo contemporâneo. O vir-a-ser das cores que se misturam é semelhante ao desafio das organizações sociais nos dias atuais. Sempre pergunta, como fazer um mundo repleto de muitos mundos? “para que os homens e as mulheres não se esqueçam que existem muitas cores e pensamentos)”, diz a história.  Um mundo feito de apenas duas cores e uma terceira que as combina. Uma realidade de poucas possibilidades é enfadonha e pífia, sem muitas possibilidades de transformação. Como lembrado anteriormente por Elias Canetti, a metamorfose é subversiva por conter a inquietação que mantém o movimento necessário para as mudanças. O vir-a-ser precisa ser cultivado nesse movimento e ao capitalismo nada mais desinteressante que a diferença e a memória. A colonização do mundo da vida aprisiona o presente, onde o tempo é a repetição constante daquilo que mantém o ser-consumidor e a alienação. Também agora encarcera o próprio futuro. Não permitir mudar o presente é não aceitar um futuro diferente.

            É certo que as consequências daquilo que fazemos agora terão repercussões e influenciarão nosso futuro. Em suma, sofremos hoje as decisões dos mortos de ontem. O capitalismo predatório, as mudanças climáticas pela presença humana, a injustiça social, entre outros desafios, são acúmulos de decisões passadas mantidas no presente. Ao não adotarmos uma postura crítica às decisões coletivas, reduzimos as possibilidades de soluções para os mesmos desafios. As intervenções no cotidiano precisam considerar essa crítica da memória coletiva para a superação das contradições de nossas relações. Nosso planejamento pede urgência no que diz respeito ao tempo dos acontecimentos. A resistência ao capitalismo deve considerar o tempo da aprendizagem, e essa por sua vez, novas racionalidades. O mito nos abriga a esse esforço por não cristalizar as possibilidades de entendimento de seus símbolos, significando que eles estão sujeitos a reinterpretações. Ele precisa ser recontado, re-significado no tempo longo das compreensões das diferentes gerações. Ao capitalismo importa apenas a igualdade da superficialidade, a mesmice do cotidiano e a indiferença. Ele busca a sofisticação da técnica, da engrenagem e dos acúmulos do capital, sem se importar com uma memória justa.  Mas isso em um primeiro momento. Precisamos evitar os maniqueísmos, pois também ele trata de reinventar os mitos, com o objetivo de se perpetuar. Então como escapar disso?

            A aprendizagem para uma nova racionalidade precisa ser instigada naquilo que as vezes consideramos absurdo, de riscos e provocações. Estes elementos emergem e submergem frequentemente em nossas vidas, mas não desaparecem. A história do capitalismo é de um amontoado de horror e tragédia em que se acirrou a exploração de muitos por poucos, e da qual conhecemos muito bem. E na tradição? O capitalismo também reivindica uma certa tradição, não? Os significados do pertencimento quando críticos pode ser uma aposta na alternativa desse modo único de viver. Porém, a construção dos interesses comuns na tradição necessita de preservações específicas. Parte delas podemos encontrar em suas histórias ao re-significar sua memória; e não basta pensar as abstrações dos mitos e na beleza poética de suas narrativas: ele precisa falar daquilo que pode ser emancipador na tradição.

            Novamente deparo-me com a urgência de autonomia e representação política do movimento indígena em relação a sua própria tradição e as outras não indígenas. Isso por que os contornos da identidade para a formação nacional são resignificados não apenas por indivíduos, mas por grupos étnicos inteiros. As políticas de combate a pobreza, a democratização do país, as relações entre moral, ética e política vão adquirindo novos contornos, e a demanda por autonomia se converteu no núcleo duro do movimento indígena no México (Navarro, 2009, p. 34). O encontro entre o zapatismo armado e o movimento indígena pacífico abriu novas portas e possibilidades de pensar a discussão política onde a autonomia é a base. Fundamental entender que tem eles em comum sua independência do Estado e dos partidos políticos[2]. De toda forma, as comunidades étnicas mexicanas, e da maioria da América Latina, vem durante décadas vividas transformações profundas. Como bem sinaliza Navarro (idem), a reforma agrária, a educação pública, a construção de meios de comunicação, a presença da rádio e da televisão, o mercado, a abertura comercial, a militarização, o alcoolismo, a prostituição, o supérfluo e a migração estão transformando drasticamente as sociedade indígenas. Existe um forte processo de reconstituição de novas identidades que combinam tradição e inovação.

            Nessa relação, entre a tradição e a inovação, encontramos então espaços para a autocrítica. Aida, mulher mazateca que nos fala com mais tempo na segunda parte desse trabalho, reflete sobre a manutenção de sua cultura, mas também da importância de se transformar parte do contexto em que vive.  Ainda acontecem, por exemplo, episódios em que o pai tem autoridade para vender a filha. Uma certa quantia de dinheiro é oferecida pela “posse” da jovem que costuma ter entre 10 e 13 anos. Aida é completamente contrária a essa prática em sua comunidade. Segundo ela, recorrer aos usos y costumbres para justificar isso nada mais é que garantir o privilégio e a dominação (nota de campo de 08/2011). 

            A superação do ressentimento, a renovação da ética, a prática da solidariedade, a capacidade de agregar valores, uma postura não derrotista, a resistência em favor da vida, um consolo para a morte, uma perspectiva de justiça, a resignação da perda, a criatividade, a metamorfose, a emancipação são fatores e elementos concretos que podem estar numa história e passarem a ser conhecidas. O pertencimento, que pode acontecer apoiado por histórias como essa “das cores”, é enraizado no mito e sua capacidade de emancipação está diretamente relacionada à crítica da tradição. São elementos contra o esquecimento e na diminuição da dificuldade do conhecer. Porém o leitor pode questionar: “e as histórias de dor e desespero? Aquelas de abusos e mentiras? São coisas difíceis de conhecer, até mesmo indesejadas.” Sem dúvida que elas existem e sempre estiveram presentes. Para isso o mito e a memória cumprem a função de reparação. E como é que se constrói isso?
continua...


[1]    No texto de Eduardo Viveiros de Castro (2006) “No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é” ele discute o “ser” índio no Brasil. A ideia central é responder a pergunta de “quem é índio?”. Ele pontua três momentos de tensão ao lidar com essa questão. Primeiro, a suposta necessidade de emancipação que existiu até os anos 70, onde os índios “ainda são indios” e precisam deixar de ser. Esse é um estado de transição e os indigenas precisam ser integrados ao Brasil. Segundo, as noções de comunidade e a dificuldade em lidar com o pertencimento. Existe uma onda que banaliza o “ser indio”. Antes ele tinha que ser integrado, agora há de ser preservado e isolado. Por fim, o lugar dos antropologos e dos especialistas pois são eles que podem confirmar ou não as identidades. Uma crítica as atividade daqueles que atuam como juristas e definidores de papéis ao dizerem “quem é o quê” no mundo. Volto a falar disso no próximo capítulo.
[2]    O exemplo de Mazatlán Villa de Flores em Oaxaca é bastante ilustrativo. Em seu processo de autonomia, uma das decisões da Asemblea Comunitaria em 1991, durante seu processo eleitoral, expulsou os partidos políticos do município. Particularmente o PRI, partido criado pós revolução e que se manteve dominante por mais de 80 anos. Depois de 20 anos dessa experiência, agora os partidos estão voltando a se organizar nessa região (nota de campo, 07/2011). Volto a falar desse município mais adiante.

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