terça-feira, 3 de maio de 2011

Com os pés na vida real (filosofía e psicanálise)

Tendo os afetos como foco e usando para isso os pensamentos de Nietzsche, Espinosa e teorias psicanalíticas, André Martins diz que a Filosofia só é válida se puder ajudar no dia a dia das pessoas

Patrícia Pereira

A Filosofia só tem valor se for capaz de transformar a vida real. É o que defende André Martins, professor associado da UFRJ, onde leciona nos departamentos de Filosofia e de Medicina Preventiva. Ele une em seus estudos os pensamentos de Nietzsche, Espinosa e teoria psicanalítica para, entre outras coisas, ajudar as pessoas a entender melhor suas vontades e escolhas. O que há em comum entre os três? O enfoque nos afetos. Tanto Nietzsche quanto Espinosa têm como conceito fundamental de suas filosofias, o afeto. Posição que contrariou os pilares da tradição filosófica e os fez serem vistos como malditos. Por outro lado, ter o afeto em foco é algo que os aproxima da Psicanálise. André Martins, doutor em Filosofia pela Université de Nice (1994) e doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ (2002), se diz antes filósofo, depois psicanalista. Nesta entrevista, ele, que é vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, membro do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva e coordenador do Grupo de Pesquisas Spinoza e Nietzsche (SpiN), explica por que acredita que os homens podem ser livres em suas escolhas, desde que estas coincidam com seus afetos.

FILOSOFIA Nietzsche, Espinosa e Psicanálise. Como o senhor chegou a essa união? Como e por que direcionou seus estudos neste sentido?

André Martins Fiz doutorado em Filosofia na França, com o Clément Rosset, que é um grande filósofo e muito irreverente. Cheguei para fazer o doutorado e assistia a todas as aulas dele, que tinham as salas lotadas. Uma das disciplinas foi Teoria Psicanalítica, no curso de Filosofia. Foi aí que comecei a me interessar por Psicanálise, a comprar livros e a ler bastante. Paralelamente a isso, meu interesse sempre foi Nietzsche - também Deleuze e Foucault - e depois Espinosa, que chegou de forma arrasadora na minha vida e me conquistou. São autores que estão pensando o mundo sensível e de alguma forma as reações afetivas. É um tema próximo da Psicanálise. Por me interessar por esses autores, por uma filosofia imanente e não transcendente, por uma filosofia que pensa a vida, acabei me deparando com a questão dos afetos. E, a partir daí, fui também estudar Psicanálise, mas dentro desse percurso individual. Ao chegar ao Brasil, fiz um segundo doutorado em Teoria Psicanalítica e sou membro de sociedades psicanalíticas no Brasil e na França. Aí tudo começou a fazer sentido, a se juntar.

FILOSOFIA Nietzsche e Espinosa foram incompreendidos em vida e tidos como malditos ao longo da história da Filosofia. Além deste perfil em comum, o que mais aproxima esses dois filósofos?

Martins O que os aproxima é o que está na origem do fato de eles terem sido incompreendidos e malditos. As filosofias de um e de outro têm pontos comuns que sempre foram polêmicos, pouco aceitos. O próprio Nietzsche me ajuda a responder a essa pergunta porque, em um cartão-postal que escreveu a um amigo, falou que se reencontra em Espinosa em cinco pontos capitais e também na tendência geral de sua filosofia. Ambos tomam o conhecimento como o mais potente dos afetos. O conhecimento ser visto como um afeto é algo completamente diferente da tradição filosófica. E é dito como sendo o afeto mais potente. O conhecimento, neste caso, tanto para Nietzsche quanto para Espinosa, é o conhecimento não só da realidade como dos próprios afetos. Se conhecemos a maneira como somos afetados, como funcionamos - nossas reações e motivações afetivas -, esse conhecimento é o que mais tem poder sobre os nossos afetos e, portanto, sobre as nossas ações. A tradição filosófica sempre buscou uma verdade a priori, ou seja, uma verdade em si ou formalmente verdadeira. Tanto Espinosa, no século XVII, quanto Nietzsche, no século XIX, tentam mostrar que uma verdade formal não existe. Segundo eles, nós só existimos no mundo sensível, na realidade, então a verdade consiste em conhecer esse mundo no qual a gente se insere e não conhecer uma verdade que seja formalmente impassível ou imutável. Esse é o grande ponto em comum entre eles, a tendência geral da filosofia dos dois que os distingue de toda a história da Filosofia.

FILOSOFIA E quais são os cinco pontos em comum entre os dois enumerados por Nietzsche?

Martins São eles: a não existência do livre-arbítrio; a não existência do mal - e subentende-se, portanto, que não existe também o bem; a não existência de causas finais, ou seja, de que algo existe no mundo porque tem uma finalidade - por exemplo: Deus criou a fruta para alimentar o homem, ou uma dificuldade para que o homem aprenda a superá-la; a não existência do desinteresse - não existe desinteresse, existem ações interessadas interesseiras e ações interessadas não interesseiras, mas sempre existe o interesse e, por fim, o quinto ponto é a negação da ordem moral do mundo: Nietzsche e Espinosa negavam a existência de um sentido moral intrínseco às próprias coisas, aos acontecimentos, à existência. Acho que Nietzsche foi muito feliz em perceber que esses cinco pontos, que são os pilares da tradição filosófica de toda a história da Filosofia, em particular da Modernidade e do Humanismo, são falhos, não existem, são ficções. Nietzsche foi muito preciso em ver que Espinosa já denunciava esses pontos na aurora da Modernidade.

FILOSOFIA Falamos sobre os pontos em comum. E fazendo o oposto, qual seria o maior ponto de atrito e de divergência entre eles?

Martins Diria que a principal diferença é de foco ou de tonalidade. Nietzsche é extremamente passional no jeito de escrever - na vida pessoal nem tanto, era uma pessoa serena, calma, apaziguadora, mas nos textos é muito passional e provocativo: "sou dinamite", "filosofar com o martelo". Espinosa, por oposição, não só no texto quanto na própria filosofia e, ao que parece, razoavelmente na própria vida pessoal, propõe um controle, um domínio sobre as paixões. Vejo que ambos têm filosofias distintas, porém muito próximas em pontos fundamentais. Nietzsche seria uma versão mais passional, mais apaixonada de um fazer filosófico. Espinosa seria uma versão mais sóbria ou racional desse mesmo fundo filosófico.intensificação das paixões alegres e das alegrias ativas. Quando Nietzsche fala do engajamento apaixonado, ele está pensando no que Espinosa chamaria de "paixões alegres". Mas o foco é diferente, Espinosa não está valorizando as paixões alegres, quer dizer, está, mas sem colocar o foco nelas. O objetivo de Espinosa são os afetos ativos, que estão para além das paixões alegres. Digamos, ter as paixões tristes é negativo para os dois, e aí viriam as paixões alegres e os afetos ativos, as alegrias ativas. Nietzsche não dá ênfase aos afetos ativos, embora eles estejam presentes também na filosofia dele. A ênfase que ele dá é - usando os termos de Espinosa - nas paixões alegres.
Nietzsche está sempre fazendo um elogio do engajamento individual da pessoa naquilo que ela faz. Ele preconiza um envolvimento apaixonado na vida, nas coisas que se faz na vida

FILOSOFIA O que seriam essas paixões alegres e tristes de Espinosa?

Martins Em Espinosa, um afeto alegre, que pode ser passivo - uma paixão alegre - ou ativo - que é sempre alegre -, é o afeto que aumenta a nossa potência de agir, de pensar, de estar no mundo, de existir. Esse é o afeto alegre: o que nos impulsiona, o que nos expande. É parecido com Nietzsche, que vai falar de uma "Vontade de Potência", que é uma vontade de expansão. O afeto triste, que é sempre passivo, ou seja, é sempre uma paixão triste, em Espinosa, é o afeto que nos oprime, que nos deprime, que vai contra a nossa potência de agir. Nietzsche vai falar contra o ressentimento, que é um afeto triste. Vai falar contra a submissão, contra seguir a moral do rebanho, contra fazer como todo mundo, que são afetos tristes. Muito embora o uso conceitual seja diferente, eles têm uma afinidade de compreensão do que são afetos. Basta pensar: em Espinosa, o afeto é um conceito central; em Nietzsche, também; e isso é raríssimo na história da Filosofia, que o conceito central de uma filosofia seja o afeto.



FILOSOFIA Afeto é uma palavra de nosso uso corrente, ligada a carinho. O que seria o afeto em Espinosa?

Martins É próximo de sentimento, mas não é exatamente sentimento. Poderíamos dizer que sentimentos são afetos, mas precisamos entender afeto no sentido mais amplo. Somos afetados sempre e inevitavelmente. E esses afetos nos movem, nos motivam, mesmo que não tenhamos consciência disso. Espinosa nos mostra, bem antes da Psicanálise, que são nossos afetos que nos movem, e que a razão não pode modificá-los, a menos que ela se torne uma razão afetiva. Afeto é a reação inevitável a tudo o que nos impressiona, a tudo o que nos marca, a tudo com o qual interagimos. Sofremos afecções e essas afecções, concomitantemente - ao mesmo tempo e não em um segundo momento -, geram afetos. Afetos resultam das interações, não brotam nunca do nada em nós. Em Nietzsche, afeto, no geral, é sinônimo de paixão. Essa paixão pode ser o que Espinosa chama de uma paixão alegre. Nietzsche não faz essa distinção, mas ele está pensando o afeto próximo de paixão e próximo de pulsão - trieb, no original alemão, o mesmo termo que depois Freud vai usar. Nietzsche pensa afeto como um sinônimo de pulsão - o que é muito próximo da ideia de afeto de Espinosa. Enfim, é diferente, mas eles estão em universos conceituais muito próximos.

FILOSOFIA Falando um pouco de liberdade. Para Nietzsche e Espinosa, os homens não seriam livres em suas decisões, mas determinados. Determinados de que forma ou pelo quê?

Martins Não é bem assim. O homem pode ser livre em suas decisões, o problema é que o julgamento do homem é que não é livre de seus afetos. Para entendermos a posição dos filósofos, que neste ponto é a mesma, precisamos entender qual é a tradição à qual eles estão se opondo. A ideia do livre-arbítrio é de que o pensamento do homem, ou sua razão, existe de modo dissociado do corpo, de suas ações, do contexto cultural, histórico, social e de todas as relações humanas. É como se existisse uma razão pura, sem influências disso tudo - que seria, na tradição filosófica, a alma ou uma faculdade da alma. Ela teria o arbítrio, ou seja, o julgamento; julgaria de uma maneira isenta de tudo o que é da ordem da realidade. Esse livre-arbítrio é que é contestado tanto por Espinosa quanto por Nietzsche. Para eles, o livre-arbítrio não existe, é uma ficção. Por mais que a pessoa tente pensar de modo isento - isento da própria maneira de ver o mundo, da própria história de vida -, não é possível.
Espinosa mostra, antes da Psicanálise, que são nossos afetos que nos movem, e que a razão não pode modificá-los, a menos que se torne uma razão afetiva

FILOSOFIA Então a determinação pelos seus afetos seria por essas influências?

Martins O homem pode fazer escolhas livres. Só que essas escolhas não serão livres dos afetos, elas serão relativamente livres no sentido de que ele pode fazer opções, até mesmo racionalmente, mas se optar por algo que vá contra a natureza dele ou contra seus afetos, não vai adiantar nada, pois os seus afetos é que vão prevalecer. Optar por algo que aja sobre seus afetos, isso é o que ele pode fazer.

FILOSOFIA Mas o homem seria livre para decidir contra os afetos?

Martins Isso é o que a gente faz o tempo todo, não é? Vamos pensar em exemplos concretos: a pessoa quer parar de fumar e não consegue, quer emagrecer e não consegue, quer ser só bonzinho e não consegue. Por quê? Porque ela está na ficção do livre-arbítrio. Em outros termos, Espinosa diz que achamos que a vontade é livre, mas a vontade não é livre. Ela depende do corpo. Vivemos em uma cultura que se autoengana e, neste sentido, a história da Filosofia inteira está errada. Como se fosse possível, eficaz ou vantajoso tomar decisões contrárias ao nosso corpo e aos nossos afetos. Ou, para usar um termo de Espinosa, que é também um termo da Psicanálise, contrário ao nosso desejo. Segundo Espinosa, o desejo é a essência do homem. Então, por exemplo, se quero parar de fumar, o que eu posso fazer racionalmente? Pensar quais são as motivações que me levam a fumar, quais são os afetos que me levam a fumar e aí começar a atacar essas motivações e esses afetos e não simplesmente achar que minha vontade é livre e tentar impor essa vontade contra meu desejo humana. Espinosa e Nietzsche batem nesta tecla o tempo todo: não se pode ir contra a natureza humana. Por mais que se acredite e se iluda de que a vontade é livre, a pessoa não vai conseguir ir contra si mesma. E aí vai gerar o quê? Já misturando com a Psicanálise: vai gerar neurose, depressão, a pessoa vai entrar em crise. Não só em respeito à sexualidade como diversas outras coisas. Se estou sem fazer nada em que me sinta realizado, me expandindo, vou ficar deprimido, abatido. Não adianta uma pessoa que está com uma vida infeliz pensar que precisa ter força de vontade. E aí vêm todos os jargões, tanto da religião quanto da autoajuda, quanto da neurolinguística, de ficar repetindo "eu vou aguentar, eu vou aguentar". Você não está tendo o conhecimento como o mais potente dos afetos. Não está tentando entender o que em você faz que esteja infeliz e o que em você lhe motivaria, lhe deixaria mais realizado.

Tentando resumir: tanto para Espinosa quanto para Nietzsche, o homem pode ser livre em suas escolhas, desde que essa liberdade coincida com o afeto dele ou com o conhecimento dos afetos. Nietzsche não usa esses conceitos, de afetos ativos e passivos, paixões alegres para parar de fumar. É preciso dar uma volta. Espinosa diz que a razão, por mais que conheça uma verdade, não tem nenhum efeito contra um afeto mais forte. É preciso que ela seja afetiva para que possa transformar um afeto. Essa chave muda a história da Filosofia inteira e muda a vida de cada um, no dia a dia, conheça-se Filosofia ou não. Se entendermos que somos seres unos, corpo e alma - Espinosa muda o termo: corpo e mente -, como dois aspectos de uma coisa una que nós somos, então temos de prestar mais atenção em nossos afetos e não ficar dando murro em ponta de faca achando que a vontade pode ser livre ou que o nosso arbítrio pode ser livre. Não vamos conseguir algum efeito positivo impondo contra nós algo que não é possível. Em toda história, o que se fez, por exemplo, em relação à sexualidade? É pecado, tem de coibir, até hoje a igreja católica oprime o desejo sexual. Mas isso é da natureza e tristes, mas diz algo muito próximo. A liberdade em Nietzsche é você coincidir com você mesmo, é desejar o seu destino - fica mais vago, mas vai no mesmo sentido.

FILOSOFIA Tanto para Nietzsche quanto para Espinosa, a emoção domina a razão? Por isso os dois foram tão malvistos em um mundo dominado pela racionalidade?

Martins Não dá para dizer exatamente que eles propõem que a emoção domine a razão. Na vida real, normalmente a emoção domina a razão. Para Espinosa, é claro que isso é ruim - e isso ajuda a entender a diferença entre os dois. Para ele, a razão tem de dominar. Só que a razão de Espinosa não é a razão da tradição filosófica, é outra razão, é uma razão afetiva. Poderíamos dizer que tanto para Nietzsche quanto para Espinosa, os afetos dominam a razão. Para Espinosa, a razão deve dominar os afetos passivos, mas a própria razão é um afeto ativo. A razão é um afeto. E, em Nietzsche, a emoção deve dominar a razão, porque ele é um pensador passional. Mas aí entram todos os detalhes do pensamento de Nietzsche em que esse domínio da emoção sobre a razão também se dá junto a um elogio do conhecimento, a um elogio de certa razão. O termo que ele vai usar é de uma Gaia Ciência, de uma razão alegre.

FILOSOFIA Não é uma defesa incondicional dos instintos, de se fazer tudo o que se deseja?

Martins Não é. Nem em Espinosa e nem em Nietzsche. Na tradição filosófica, há uma dicotomia: emoção versus razão. E, de modo geral, permanece no senso comum que Nietzsche - e talvez Espinosa - estaria do lado da emoção contra a razão. Isso é falso, porque eles estão criticando justamente essa dicotomia. Eles estão propondo outra ideia de razão - em Espinosa, uma razão afetiva e, em Nietzsche, uma Gaia Ciência - e outra ideia de emoção, no sentido de uma afetividade que abrange tudo, até a razão. Vai ser um tipo de emoção contra outro tipo de emoção. E o que eles têm como inimigo em comum é a razão tradicional, porque essa razão tradicional é que é fictícia, tanto para Espinosa quanto para Nietzsche. Isso muda o cenário. Eles foram tidos como malditos porque foram mal compreendidos, ou seja, porque se atribuiu a eles um lugar dentro de uma dicotomia que eles criticam. É a partir disso que se considera que tanto um quanto outro, cada um em sua época, propuseram filosofias escandalosas, contra a razão, dentro desta ideia de cada um fazer o que quiser, não existir mais moral. Não existe mesmo, mas existe ética, que é muito melhor. Quer dizer, se não mudamos o quadro conceitual, parece que eles estão propondo algo insustentável, e não é nada disso.

FILOSOFIA Além de filósofo, você é psicanalista. A Filosofia influencia, de alguma forma, seus estudos sobre Psicanálise?

Martins Sou primeiro filósofo e depois psicanalista. Quando vou estudar a Psicanálise, eu, filósofo, que gosto de Nietzsche e Espinosa - ou seja, dois filósofos que pensam o afeto, que pensam o mundo e questões tradicionais da Filosofia com a perspectiva dos afetos - não acredito em dogmas. Não vejo o texto de Freud como se fosse a Bíblia, o Antigo Testamento, e o texto de Lacan como se fosse o Novo Testamento, regidos pelo argumento de autoridade. A Filosofia já passou por isso quando, por exemplo, na Idade Média, os textos de Platão eram incontornáveis e não se podia contestar. Mas houve alguém que contestou, em parte: Aristóteles. É como se Freud fosse Platão e Aristóteles, Lacan. Eu diria que a Psicanálise está teoricamente na Idade Média, quando se prende a fundamentalismos e ortodoxias. Então esse tipo de dogmatismo, com um olhar filosófico, não faz sentido para mim. Por isso valorizo Winnicott, que, a meu ver, é o psicanalista mais aberto teórica e clinicamente. O meu olhar para a Psicanálise é um olhar de autocrítica. Não é um olhar de fora: a Filosofia criticando a Psicanálise. Isso porque eu sou psicanalista também. No outro sentido, a Psicanálise me ajuda a não cair na armadilha de uma Filosofia transcendental, apriorística, ou seja, me ajuda a conseguir ver a Filosofia como algo que está pensando o dia a dia, a realidade, a afetividade, o mundo real, concreto, o mundo sensível. Para mim, ou a Filosofia tem um poder de transformar a vida real ou ela não tem utilidade, a não ser como ferramenta para algo que venha ter algum peso de intervenção na vida. A Filosofia como um saber endógeno, que se retroalimenta e ponto-final, como muitas vezes é vista, para mim não tem valor.

FILOSOFIA Você trabalha com a Filosofia e a Psicanálise na área de Saúde Coletiva, visando a construir uma definição positiva de saúde. De que forma isso se daria? Como Filosofia e Psicanálise podem interferir em Saúde Coletiva?

Martins Oriento dissertações de mestrado e teses de doutorado não só na Filosofia, mas também na Saúde Coletiva da UFRJ. E me dá muito prazer ter orientado trabalhos onde usamos, por exemplo, Espinosa para pensar a questão da obesidade; Deleuze para pensar o alcoolismo entre os trabalhadores da construção civil; Foucault para pensar o psicólogo da Polícia Militar. É um prazer ver o quanto a Filosofia tem a dizer sobre questões práticas do dia a dia da sociedade. E meu trabalho pessoal, na Saúde Coletiva, é a construção de uma definição positiva de saúde. Há uma definição negativa de saúde, que diz: "saúde é a ausência de doença". No meu entender, isso é péssimo. É imaginar - e é, infelizmente, o que vigora - que cuidar da saúde restringe-se a atacar a doença. Uma implicação disso é negligenciar a promoção da saúde e a prevenção que não seja medicamentosa nem cirúrgica. Fortalecer o corpo e o psiquismo de cada um de nós é algo que quase não existe. O médico muitas vezes tem tanto interesse em acabar com a doença que acaba também com o doente. Atacar a doença a qualquer preço pode ser feito em casos extremos, mas tem sido a ordem do dia. Isso gera também, de modo geral, a ideia de que quando se tem uma doença, existe uma peça da máquina do corpo humano que está doente, funcionando mal, então é preciso substituí-la. Não se pensa no corpo humano como um todo. Essa definição negativa de saúde é também um reflexo de uma questão filosófica de se considerar alma e corpo separados, e o corpo como uma máquina.
A Psicanálise me ajuda a não cair na armadilha de uma Filosofia transcendental, a conseguir ver a Filosofia como algo que está pensando o dia a dia

FILOSOFIA Além de ser autor do livro Pulsão de morte? (Ed. UFRJ, 2009) e organizador de O mais potente dos afetos (Martins Fontes, 2009), você está para lançar o livro As ilusões do eu. Já tem data prevista?

Martins Martins Deve ser em maio deste ano. Foi um livro que organizei, com outros dois professores da USP, e que reúne 26 conferências do Segundo Congresso Internacional Espinosa e Nietzsche, realizado em São Paulo, no final de 2009. O tema é a crise da Modernidade e a crítica à ideia de sujeito - sujeito do livre-arbítrio, que determina suas ações a partir de sua própria razão ou da alma. Na apresentação, colocamos como epígrafe uma frase de Freud: "O eu não é mais senhor em sua própria casa". É uma frase que faz ligação com o título do livro e mostra o quanto Espinosa e Nietzsche estão na base não só da Psicanálise, como desse pensamento da afetividade inconsciente. O que eles estão dizendo, em outras palavras, é que nós somos motivados, inconscientemente, por nossos afetos.

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