Essa semana encontrei em um blog de compartilhamento de música e material sobre capoeira uma referência a um disco lançado por um grupo que se define como cristão, que fazem segundo eles, uma capoeira gospel. Assunto polêmico. A coisa que mais têm chamado a atenção são as mudanças que alguns desses grupos estão realizando ao se apropriarem da capoeira para difundirem a “palavra de cristo”: músicas que não são mais cantadas por falarem de santos católicos e principalmente em referência a espiritualidade de origem africana; atabaques que não podem ser tocados; a perspectiva extremamente desportiva negando grande parte dos fundamentos e preceitos; a memória manipulada e esquecida de resistência e luta afrodescendente; etc. São apenas alguns exemplos das transformações que a capoeira vem vivendo dentro de alguns desses grupos. Escrevi um comentário nesse mesmo espaço e reproduzo aqui.
Salve a todos! A capoeira como toda cultura popular não tem dono. Não se pode atribuir uma propriedade e definir a quem ou a qual grupo ela pertence. Quem é mais dono e quem não é. Ela, em minha opinião, é de quem a pratica. Entretanto, o que não se deve é esquecer de sua memoria, é evitar as apropriações indevidas e cínicas que sempre ocorreram com as tradições de matrizes africana. O futuro da capoeira está em seu passado! Foi assim com o rock'n'roll e o hip hop, só pra referir ao que se tornou “pop” e de algumas apropriações indevidas mais conhecidas. Nos anos 70 e parte dos 80 muita gente achou que a capoeira deveria ser mais “letrada”, que para ensinar capoeira tinha que ter formação universitária. Besteira. A capoeira sempre foi pressionada de algum modo para ser embranquecida, em um processo de mestiçagem (e isso se dá em outros casos: alguém viu a propaganda da comemoração de 150 anos da Caixa em que transformou Machado de Assis em um homem branco?) que sempre favoreceu um grupo étnico em detrimento de outro, nesse caso, o negro subjugado pelo branco (já notaram que os mestiços normalmente se definem mais como brancos que como negros? Vide os jogadores de futebol quando indagados sobre isso... mas isso é outro papo). O que me incomoda nessas transformações da cultura popular, particularmente de origem africana, é que suas “mudanças são para melhorá-la” e "que da maneira que é não está tão bom". Recentemente, por exemplo, a apropriação do acarajé na Bahia por um tal de acarajé de cristo como “esse é que é do bem”. Já vi grupos de capoeira gospel que estão parando de usar atabaque por um claro preconceito ao associá-lo ao candomblé e a umbanda. Eu admito que não sei muito desses trabalhos que se auto intitulem gospel, mas com o tempo vamos vendo como eles manejam a memória da capoeira, e sua ancestralidade que sempre esteve associada aos terreiros e a toda beleza do povo afrodescendente. Quero ver quantos desses grupos irão respeitar essa historia, respeitar a espiritualidade daqueles que não crêem em Jesus como seu salvador, ou quem sabe apoiar os capoeiristas que tem seu trabalho ligado as matrizes africana e que continuam a ser discriminados e perseguidos por aqueles que consideram essa religiosidade ou tradição menores. A religião de uma pessoa não deve ser critério de discriminação. Não gosto que digam que estou errado, por isso tento não fazer o mesmo. Alguém anônimo nos espaços para comentários desse blog que me referi disse: “AMEI PODER A LOUVAR À DEUS, QUE TÃO PODEROSO NO MOMENTO DE PRATICAR ESSE ESPORTE TÃO MARAVILHOSO QUE FOI DETURPADO POR TANTO TEMPO.” O que será que isso quer dizer? Que até esse momento que a capoeira não era de cristo esteve equivocada?! Já sinto cheiro de preconceito no ar... Com prazer eu talvez jogaria numa roda gospel, desde que nela esteja bem claro que bato cabeça no Congá, que minha ancestralidade não é cristã nem tão européia (apesar de falar a língua do colonizador), que vou sim cantar para Lembá, à Santa Bárbara e aos Inquises de meu povo e que isso deve ser respeitado. No nosso grupo de capoeira temos um Afoxé (onde não é necessário ser desta ou daquela religião para participar) que todo ano sai em celebração a Santo Antônio. Tocamos com nossos atabaques, agogôs e xequerés. Distribuímos rosas brancas e sorrisos. Todos são convidados e bem vindos! Passamos sempre na frente de uma tal casa-igreja gospel, onde sempre falam de um tal de rock de cristo, surf de cristo, skate de cristo, jiu jitsu de cristo, etc. Bem, esse sempre foi o único lugar que nunca aceitou uma de nossas rosas, nem retribui o bom dia que damos diariamente. Oxalá vocês não sejam assim. Que apoiem os terreiros de candomblé e umbanda que continuam perseguidos, inclusive por aqueles que dizem amar Cristo. Isso sim seria lindo e um ato realmente cristão: apoiar o direito de se expressar e aceitar de fato os que são diferentes. O pouco que sei do cristianismo é que ele é, ou deveria ser, a favor do respeito e não das perseguições, onde a mensagem de Cristo foi de generosidade e compaixão. Até esse momento essa onda da capoeira cristã têm se mostrado mais um elemento do já conhecido processo de colonização que as culturas afrodescendentes sofrem a mais de 500 anos. Oxalá que a memória e a ancestralidade da capoeira sejam respeitadas. Oxalá a capoeira continue a nos ajudar e entender nossas diferenças. A capoeira já foi por demais agredida em sua memória e continua em seu presente. Por aqui continuaremos a distribuir flores e cantando aos Orixás. Dando aú, rasteira e cabeçada. Aqui a capoeira não é pra bater em ninguém, mas também não é pra apanhar... mandinga é algo muito especial entre nós. E por aí? Ps - parabéns pelo blog.
muito pertinente este post, ale! outra coisa não sabem os que se auto intitulam gospel... que o verdadeiro "gospel" remonta as raízes do soul, do blues, do jazz... se quer é lembrado! ... sumemo ale... aú, rolê e chapa de frente neles, que é pra ver se a esquiva funciona!
ResponderExcluirmuito bem lembrado querida! valeu.
ResponderExcluirPuxa, Ale, que comentário bacana. Uma boa análise sobre as tais 'apropriações'. Tive oportunidade de conhecer os surfistas de cristo lá de Fortaleza e, de fato,eles me surpreenderam. Eles me pareceram mais respeitadores do que eu imaginei. Porém, é sempre bom colocar os pontos nos is quando se trata de releituras da tradição. Não dá para engolir preconceito cristão!
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