quinta-feira, 2 de junho de 2011

Carência afetiva 2.0

Redes sociais exacerbam fenômeno conhecido como medo de estar perdendo algo; carentes profissionais confessam síndrome

Adams Carvalho

LAURA CAPRIGLIONE
DE SÃO PAULO

Sabe aquela situação em que você acaba de se separar, pensa que foi melhor assim, que vocês não se entendiam mesmo?... Aí, você se prepara para passar um fim de semana introspectivo, quieto. Para por as ideias no lugar, ver como levará a vida adiante sem aquele pedaço de você que foi embora. Tudo sem dramas, bem racional.
Então, o iPhone acende e solta aquele assobio que anuncia novidades. Mensagem fresquinha.
É quando você toma consciência de que os amigos com quem vocês dois passaram os melhores momentos juntos, bem, esses amigos foram para o outro lado.
Para piorar, enquanto você está sozinho, estão todos se divertindo juntos na sua casa de praia. A sua ex-cara metade festeja entre os mais alegres e nem faz questão de disfarçar aquele sorriso de idiota feliz. E eles postam centenas de fotos da festa, na maior sem-cerimônia. "Meu mundo caiu."

MENOS VOCÊ
Sempre se sofreu de solidão, de carência afetiva. Mas para uma turma cada vez maior, parece que o Facebook, com suas relações fechadas de amigos (só se entra mediante aceitação de alguém de dentro), aumentou a percepção de exclusão do pessoal "de fora".
Com o Twitter, o Flickr e o Instagram (de troca de imagens) somam-se bilhões de atualizações por dia.
Se, por um lado, isso produziu uma imensa montanha de textos, fotos, registros de áudio e informações acessíveis on-line a milhões de curiosos, voyeurs, inimigos e até amigos; por outro, serviu para jogar na sua cara as festas, os programas legais e as reuniões em que todo mundo está se divertindo demais. Menos você.
Ninguém precisa mais de fofoca para saber que não foi convidado para uma comemoração. Está tudo nas redes sociais. É só querer achar.
Os americanos, que são bons nisso, já deram nome para o fenômeno. Chama-se "Fear of Missing Out".
Eles já falam apenas Fomo, e todo mundo entende, de tão íntimos que ficaram do conceito (o Google tem 1.030.000 entradas para a expressão). Aqui, pode-se traduzir como "medo de ficar de fora, de estar perdendo algo." Quem já entrou numa rede social sabe bem o que é essa sensação.

Vazio é provocado por 'amigos-Facebook'

'São aqueles que você aceita só para se sentir popular', diz 'carente profissional', que monitora ex-mulher na web

Publicitária confessa que, quando está em festa, faz questão de avisar a toda a sua rede de que está sensacional

DE SÃO PAULO

"O problema é saber. Diariamente, recebo um zilhão de alertas, me avisando de que estou perdendo algo imperdível. Fico com dor de barriga de ansiedade. Mas o pior é que, toda vez que escolho um programa, logo depois descubro que o melhor é aquele a que não fui."
O depoimento é da publicitária paulistana A.P., 24, baladeira convicta, conectada 24 horas por dia, viciada no programa de troca de mensagens gratuitas WhatsApp, além do Facebook (em que coleciona 1.314 amigos).
Segundo o estudante e professor de inglês M.B., 27, 157 amigos no Facebook, as redes sociais, ao mesmo tempo em que aproximam as pessoas, acabaram aprofundando uma sensação de solidão. "Quando descubro na rede que uma balada muito legal está acontecendo, eu não consigo deixar de pensar que eu deveria estar lá também. Por que é que ninguém me avisou disso?", lamenta.

MITO DO 'IMPERDÍVEL'
A.P. não gosta do papel de vítima. Ela acha que essa sensação de "estar perdendo algo imperdível" faz parte do jogo de viver conectada. "Para evitar isso, só entrando em uma caverna e jogando fora o iPhone e o laptop." A publicitária considera que "tem muito mito nessa conversa de imperdível". Quando está em uma festa, ela confessa, faz questão de "bombar" o lugar, avisando a toda a sua rede de que está sensacional --mesmo que não seja tudo isso.
"Sabe aquele cara que compra um carro zero ruim pra caramba, mas diz que o bicho é o melhor do mundo, só pra valorizar o investimento? Sou eu. Ahahaha."
O exibicionismo é parte do jogo, vários internautas reconheceram. "Tem uma balada a que vou sempre; é transmitida pela internet. Uma vez não pude ir e fiquei assistindo às pessoas dançando, dando tchauzinho para a câmera. Quando começava a tocar uma música de que eu gosto, pensava 'queria estar lá!' Sabia que tinha perdido algo", relata J.C.S., 20, estudante universitária.
"O que provoca esse vazio, tantos desencontros, é não ter amigos reais, só 'amigos-Facebook', aqueles que você -um carente profissional- aceita só para se sentir popular", explica o produtor de vídeo N.A., 26, 838 amigos na rede social.
Para ele, "amigos reais" não ficam aguçando desejos alheios só para parecerem legais. "Eu tento usar o Facebook com responsabilidade, para não me ferir e para não ferir outras pessoas."
Mas ele está ferido, admite. Separado há três anos, N.A., que morava em São Paulo, mudou-se para um sítio -"Fui recomeçar a vida".
O recomeço ainda não deu muito certo, porque N.A. não consegue parar de entrar no perfil da ex-mulher. Ora com o pretexto de ver como estão os filhos de três e cinco anos, ora com o clandestino propósito de espionar .
"O que ela está fazendo? Em que está pensando? Está engordando? Quem são os amigos com quem ela está conversando? Ainda não consegui me libertar", diz.
"Sempre que dou um rolê nas redes, me sinto com saudades", afirma o professor M.B.. "É sempre incômodo lidar com as saudades quando você encontra pessoas com quem teve algum nível de intimidade no passado.
Sabe aquela amiga com quem você morou há anos, em uma república? Depois de dez anos, você, de repente, encontra-a em uma página do Facebook, e ela mora em outros lugares, está pensando outras coisas, tem outros amigos. É quase impossível um reconhecimento imediato; então você se dá conta de que perdeu aquela pessoa."
Segundo Caterina Fake, cofundadora do Flickr, o medo de estar perdendo algo é um velho problema que agora foi apenas exacerbado pela tecnologia. "O desejo é um dos três venenos do budismo", ela lembra (os outros são o ódio e a ignorância). Sempre foi assim, diz Fake. (LAURA CAPRIGLIONE)

Angústia vem da dificuldade de escolher

DE SÃO PAULO

"Há mais ou menos um ano, vieram me entrevistar sobre uma tal 'geração nômade'. O fenômeno acontecia assim: uma turma de jovens, sem conseguir escolher a melhor balada para ir, dividia-se em três ou quatro grupos. Pelo Twitter, um grupinho informava aos demais onde estava. No fim, a turma tinha ido a todas as festas --e não ficado em nenhuma."
De acordo com a psicóloga Rosely Sayão, colunista da Folha, a angústia "de perder alguma coisa imperdível", surgida nas redes sociais, é um reflexo da mesma dificuldade de escolher, expressa no comportamento da tal "geração nômade".
"Todo mundo quer 'tudo ao mesmo tempo, agora', não é? O problema é que não dá", diz Sayão. "Uma das características do mundo contemporâneo é que você acorda e já tem de fazer escolhas. É café da manhã com ovo ou sem? Vou caminhar, nadar ou não vou fazer nada?"

'PIRANTE'
Segundo Sayão, na vida social, também se multiplicaram as opções.
"Como escolher ficar em casa, se há tantas coisas acontecendo lá fora? Qual será a melhor balada? Isso é pirante."
Para a psicóloga, uma forma de resolver a dúvida foi gerada pela ferramenta do Facebook que contabiliza amigos.
"Colecionam-se 'amigos' como animadores de programas de auditório contabilizam seu ibope."
"Vou à balada de quem tem mais amigos. Vou ao local com mais 'curti' [botão do Facebook]. E assim continuo me esquivando da responsabilidade de escolher. Não é por acaso que tanta gente sente que está perdendo alguma coisa realmente importante", afirma Rosely Sayão. (LC)


Em um mundo de likes e RTs, a gente quer respaldo sempre

DANIELA ARRAIS
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Eu estava doente e não sabia, até encontrar na internet, a causa do meu mal, o diagnóstico. Sofro de Fomo, ou "Fear of Missing Out" (na tradução livre, medo de perder).
Sabe quando você está em casa e começa a olhar o Instagram e, imediatamente, sente que deveria estar na rua, vendo uma exposição, levando sua afilhada para tomar sorvete, achando beleza nas esquinas pichadas de SP?
Pois então, isso é Fomo. Você não quer perder a chance de contar para o mundo como sua vida é legal, como seu dia a dia vai além do trivial. Afinal, ficar em casa assistindo a um filme atrás do outro não rende fotos bonitas, por mais que existam 213 filtros à sua disposição.
Mas aí você se pergunta: se eu estou feliz em ficar em casa, qual é o problema de acompanhar a vida dos amigos e dos conhecidos? Nenhum. Mas a gente vive tanto na internet que é a coisa mais normal do mundo transpor alguns elementos da rede para a vida real.
A gente vive num mundo de likes e RTs. Parece que não basta mostrar um vídeo, compartilhar uma música. A gente quer o respaldo dos outros para um gosto que é nosso, mas que parece valer mais quando endossado por uma pequena multidão.
Conversando hoje com uma amiga, ela me falou: se posta "I love ducks" (eu amo patos) no Facebook, não recebe likes. Se posta "I love cats" (eu amo gatos), recebe vários, seguido de onomatopeias, de corações, de links para vídeos de gatos fazendo fofuras. Nada mau em gostar de gatos, mas o fato de ela não receber tantos likes quando fala de outro animal acaba mudando a "linha editorial" da sua vida digital.
"Você quer estar na matilha, no bando, no cardume... E passa a colocar fotos de gatos sem querer", diz ela.
Até onde isso vai? Será que é o caso de prescrever horas certas para usar internet? É preciso fechar o Facebook, guardar a foto na memória em vez de no iPhone? Não sei.
Quando vejo essas pesquisas que falam que o internauta passa, em média, seis horas por mês no Facebook, dou risada e penso: estamos todos doentes! Afinal, seis horas é quase o tempo que eu e grande parte dos meus amigos passamos no Facebook a cada dia --e, sim, temos trabalho, vida social...
Mas ficamos conectados o tempo todo, porque queremos ver tudo, saber de tudo. É doença, sem dúvida. A cura? Não sei. Será que é aprender a lidar com tanto excesso ou me internar numa clínica para viciados em internet? Você decide!


Fonte: Folha de SP, 18/05/2011

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