Aquilo que não quer mudar, que pensa não mudar, tende a desaparecer. Um dos temas sobre a qual tenho me debruçado é exatamente ver a subjetividade presente naquilo que é reivindicado como tradição. Esse é um lugar difícil de pensar, e assim como a cultura, não há um consenso estabelecido e varia de acordo com seu tempo e contexto. Para mim entretanto, uma das coisas presentes nesse modo de lidar com a tradição, e aquilo que se transforma, é a presença do imperceptível e do indescritível. Considerar isso é reconhecer que a tradição vive metamorfoses, e negá-las é estar a um passo do fundamentalismo.
Delimitemos assim o campo por onde pisamos ao falar de metamorfose humana. A metamorfose habita outros terrenos do conhecimento como a botânica e a minerologia, as ciências naturais e físicas. Vejamos como o elemento do “imperceptível” pode ser demonstrado a partir dos saberes das ciências naturais – ciências estas que precisam lidar constantemente com o crescimento e a morte dos seres vivos. A semente se metamorfoseia para virar árvore e depois definha. A mudança de um estado a outro não é percebida de imediato no seu acontecimento. O recém-nascido possui células que se multiplicam e se decompõem a todo instante enquanto seu organismo cresce, transformando-o permanentemente. Podemos dizer que existe um corpo em diferentes fases de desenvolvimento e, principalmente, podemos dizer que será sempre um corpo humano. A mudança é imperceptível no convívio e ao mesmo tempo possuidora de um caráter de extrema continuidade. A metamorfose não se deixa prender (Ardans, 2001). Perante a metamorfose natural, se reconhece que a coisa é a mesma embora esteja sempre mudando.
Já o elemento indescritível traz o fato de todo fenômeno existir em si o ser e o não-ser simultaneamente, tudo é e não-é ao mesmo tempo. Estamos diante de um olhar que é quase primitivo, no sentido do primordial, das origens, do primeiro, daquilo que é inicial. Uma metamorfose se deu e a coisa passou a ser outra, mas não absolutamente. A metamorfose é mágica (Ardans, 2001), é indiscernível. Quando é que o dia deixa de sê-lo para virar noite? A aurora e o pôr-do-sol são lugares que não podemos classificar, capturar, aprisionar com momentos do dia, o antes e o depois do anoitecer. Não podemos entendê-la como sendo uma coisa e não outra. Por isso evitamos definir a metamorfose como simplesmente uma “mudança”. O imperceptível e o indescritível contém a ambiguidade, e mais adiante veremos, o paradoxo. A ambiguidade a constitui por definição, enquanto a idéia de mudança em um sentido absoluto e completo não permitindo essas condições em seu ser.
É importante também considerar aquilo que é externo e interno ao movimento e ao processo de metamorfose. Ainda neste sentido, é importante fazer a distinção entre imitação e metamorfose para evitar seus usos indistintamente. Como nos aponta Canetti (1995):
“A imitação é algo externo; ela pressupõe que se tenha diante dos olhos algo cujos movimentos se copiam. Em se tratando de sons, a imitação nada mais significa do que a reprodução externa desses sons. Com isso, nada se diz a respeito da constituição interna daquele que imita. Macacos e papagaios imitam; é de supor que, nesse processo, eles não se modifiquem em coisa alguma. Poder-se-ia dizer que não sabem o que estão imitando: jamais o vivenciaram internamente. Assim, podem passar de uma imitação a outra sem que a sequencia na qual isso acontece tenha para eles o menor significado. A falta de persistência facilita a imitação. Esta relaciona-se usualmente a um único traço. Uma vez que, pela própria natureza da coisa, se trata de um traço que chama a atenção, a imitação frequentemente simula uma capacidade de “caracterização” inexistente na realidade.” (p. 269)
Fica claro, então, que a metamorfose necessita de continuidade e consistência. A imitação traz movimento, mas não transformação substancial ao ser que imita. É apenas a cópia. E isso se aplica às pessoas e às muitas formas de atuação no mundo que cada um pode ter. Porém a imitação pode servir enquanto um elemento importante em direção à metamorfose. Pela sucessão de imitações podemos dar o primeiro passo, mas logo é necessário abandonarmos tal modo para entrarmos de fato em um processo de metamorfose (Canetti, 1995). A limitação da imitação é que ela permanece na superficialidade do movimento ou som, e é exatamente isso que impede o seu aprofundamento.
A transição da imitação para a metamorfose ocorre na forma da simulação. Trata-se de um modo onde há uma aproximação relativamente tranqüila, afetiva e amistosa, mas com uma finalidade contraria a isso, mais hostil e dissimulada. Aquilo que se vê e percebe em primeiro momento não corresponde a sua verdadeira intenção. Segundo Canetti, a simulação é uma modalidade antiga de metamorfose, caracterizada pela exclusividade de seu aspecto exterior, ou em outras palavras, em se criar disfarces. Isso tem relação com o poder e o controle. O caçador que tem controle sobre si e sua arma, assim como da imagem do animal que busca, é um bom exemplo para compreendermos esta idéia1. O caçador para atingir seu propósito, permanece absoluto em seu papel, mas precisa se estender à condição do animal para conhecer seus movimentos e sua própria natureza, passando a ter o controle das duas criaturas (humana e animal) simultaneamente.
“O fluxo das metamorfoses das quais ele seria capaz é estancado; ele se encontra em dois lugares precisamente circunscritos, um dentro do outro, e este claramente apartado daquele. É essencial aí que o interior permaneça rigorosamente oculto por detrás do exterior. A intenção mortal denuncia-se apenas no ato final.” (Canetti, 1995, p. 370)
A simulação é caracterizada pelo aspecto da duplicidade. A aparência, ou a exterioridade, é evidente no jogo de forças dessa relação. Sua efetividade vai depender da sagacidade dos envolvidos nessa trama, pois nada é o que parece ser. Porém, internamente a coisa é e não é ao mesmo tempo. Não se pode ser o outro em sua totalidade, mas não se permanece o mesmo ao se estabelecer um contato com esse outro. Não se sai ileso dessa relação. No caso do encontro entre a presa e o caçador o desfecho é a morte desta primeira. Para Canetti (1995), a ação resulta ai do fato de as simulações produzirem um efeito diverso do planejado. Somente o ser humano emprega conscientemente a simulação. (p. 372)
Entendida essas diferenças, fica mais fácil saber que a reivindicação da tradição é feito por todos os lados e por quase todos, seja pela extrema direita conservadora e reacionária aos lugares e povos mais distantes e originários (mesmo que não utilizem esses conceitos de tradição, cultura, povo, etc). O que me parece distinguir uma coisa de outra é a qualidade crítica diante de seus valores, usos e costumes. Crítica para ajudar a entender o pertencimento, os significados e sentidos compartilhados. O problema do fundamentalista é que se crê o possuidor da última palavra, detentor da verdade final. Se a tradição é capaz de provocar resistência e autonomia caminha para possibilidades de metamorfose. Isso a coloca em um projeto emancipatório que lhe garante um modo de pensar e viver sem impor aos outros e diferentes essas mesmas características. Quando dizemos e impomos aos outros um modo de pensar e viver rechaçamos a metamorfose e nos transformamos em autoritários.
A tradição se identifica pela aproximação de movimentos que são imperceptíveis e indescritíveis e nunca pela imobilidade.
Continua.
1Canetti (1995) faz inúmeras referencias ao folclore dos bosquimanos (p. 337), descrito por Bleek, e em breve ao falarmos dos pontos de partida para a metamorfose estaremos considerando parte dessa análise para nos auxiliar em determinados momentos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário