domingo, 7 de agosto de 2011

ele não sabe com quem mexeu

Por Carla Luma

Deus, a Natureza, essa força misteriosa graças à qual existimos — e acerca da qual não ouso aprofundar especulações para não prejudicar a pele, as unhas e o juízo — nos castigou com a maternidade e, para compensar, deveria nos conceder imunidade contra certos sentimentos, entre os quais o amor, que também estraga a pele, as unhas e o juízo. Sobretudo o juízo.

Ontem, depois de muito tempo, quase dois eternos meses, mergulhada na escuridão da loucura à qual fui atirada pela paixão por um cafajeste que me conquistou com barris e mais barris de lábia e de lágrimas, emergi quando num átimo de lucidez saquei que o dito cujo conseguiu me extorquir quase todo o saldo da caderneta de poupança com o pretexto de que era um empréstimo para estabelecer-se no comércio.

A estúpida aqui se sentia enlanguescida quando o filho da puta me dizia que já não conseguia suportar os ciúmes e a dor que sentia quando me sabia nos braços de outro homem, mesmo sabendo que para mim é um serviço como outro qualquer, no qual não há sentimento algum envolvido. E dizia que me libertaria dessa escravidão quando o seu negócio começasse a dar lucro, e me fazia assinar outro cheque.

Quase dois meses me enrolando. Nunca me disse onde investia o meu dinheiro. É uma surpresa. Mas é comércio do quê? Em qual rua? É uma surpresa, no dia da inauguração você vai ver. A loja está ficando linda, mais dois ou três meses. Espere, tenha calma. E beijava os meus olhos, beijava as mãos, a boca e me arrancava a roupa, me comia e me fazia assinar outro cheque.

Ontem eu não resisti à curiosidade e resolvi segui-lo. Peguei um táxi porque temia perdê-lo neste caos que é o trânsito em São Paulo. Melhor não dar aqui todas as voltas que o carro deu até chegar em uma rua no Tucuruvi. Ele estacionou e entrou em um prédio de apartamentos. Esperei uns cinco minutos e entrei no prédio. Francisco, o velho porteiro, encantado pela generosidade do meu decote, era todo loquacidade e em menos de dois minutos eu já sabia que o meu amantíssimo gigolô era casado e pai de três crianças.

Subi ao 904. Abriu a porta uma garotinha linda com cerca de sete ou oito anos de idade. Ela sorriu e aquilo me desarmou. Vi-me naquela menina. Vi-me quando tinha medo de escuro e me enfiava entre papai e mamãe quando acordava assustada com a escuridão da madrugada. Vi-me quando me escondia debaixo da cama para não assistir papai bêbado espancando mamãe. De dentro uma voz de mulher perguntou quem era. Baixinho eu disse que era engano e a menina gritou para dentro que era engano. Desci chorando de raiva porque não consegui executar o meu plano de vingança. Não, eu não poderia fazer aquilo. Aquela garotinha, seus irmãos, sua mãe, eles não tinham culpa da minha estupidez.

Ontem não voltei pra casa, como quem não voltaria para um quarto escuro. Caminhei à-toa, depois fui para a casa de Amália Malaquias, amiga cuja alegria contagiante é sempre capaz de me transformar o humor, de trazer-me de volta à luz. Agora, em casa, refeita, escrevo esse relato que se não servir pra nada mais, servirá pra que eu não me esqueça e caia outra vez na tentação de uma vida normal. Miguel ainda não sabe que eu sei. Hoje, quando vier, será recebido como se nada tivesse acontecido e eu o farei broxar, eu o humilharei naquilo que ele se considera infalível e eu o tangerei como quem tange uma vaca velha que não dá mais leite nem cria. Eu o cuspirei como quem cospe bagaço de fruta chupada. Ele não sabe com quem mexeu.

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