Estava com alguns amigos, entre eles meu cumpradre Nuno, historiador cearense que vive um tempo por aqui também, e quando escutamos isso nos entreolhamos e pensamos: “ouvi direito o que ele falou?!” Sim, o fotógrafo afirmava, sem dizer como chegou a essa conclusão, que o Brasil não faz parte da América Latina.
A exposição foi inaugurada e passamos a olhar as fotos. Eu, paulistano de alma, entrei desconfiado. Afinal, depois de falar isso do Brasil o que poderia vir seria uma surpresa. As fotos são mesmo muito bonitas e ele faz um bom recorte da realidade de São Paulo. Estão lá imagens da ocupação Prestes Maia, do Banespa, da Luz, do Minhocão, dos condomínios de luxo do Morumbi, as ruas da Brasilândia, dos guaranis na zona sul, e de gente anônima nas muitas ruas da cidade. Foi divertido contar algumas histórias que vivi e que conheço desses lugares para os amigos que me acompanhavam. Não está mal, mas essa história de não ser latino...
Meu camarada Nuno foi o primeiro a escaldar o sujeito.
“Cara, como assim o Brasil não é América Latina?”
A resposta foi mais ou menos essa:
“Não é não. Primeiro que vocês não escutam rock espanhol. Depois a comida não tem nada que ver. Olha a Colombia e a Venezuela por exemplo, elas sim se parecem”.
“Cuméqueé?” Respondeu Nuno.
A gente ficou um tempo pensando sobre a maneira de entender o motivo do Brasil não ser latino pela visão do rapaz enquanto desfrutávamos do goró servido nessas ocasiões. Achava importante entender isso um pouco melhor. Fui eu escaldar um pouco também.
- Meu, as fotos estão boas.
- Sim, gostei das fotos da Prestes Maia e do centrão. Conheço muito bem esses lugares. Mas vem cá, como é isso pra você do Brasil não ser latino?
-Eu acho que não é! Vocês escutam outra música, comem outras coisas. Portugal e Espanha não tem nada a ver. E olha os negros no Brasil e nos outros lugares...
Então, trim, trim, trim... o telefone dele toca e ele vai atender. Não volta. E eu ali de boca aberta pensando principalmente na ultima coisa que ele falou. “Os negros o quê?!” Parece que o rapaz comete dois erros muito comuns ao pensar a questão latino americana; que é o fato de que latino é “hablante” de espanhol, e o segundo erro, o da colonização. Esclarecendo então: América Latina é nesse sentido primeiramente uma construção geo-sócio-política. Mesmo com a diferença linguística entre espanhol e português (mas ambas são românicas) compartilhamos o mesmo processo em relação a construção desse território no continente americano, particularmente no último século. Em outras palavras, os gringos sempre trataram de nos foder igual! Se não leu leia “As veias abertas da América Latina”, de Eduardo Galeano. Tá bem explicadinho. Os povos originários e seus idiomas sempre receberam tratamento parecido de seus colonizadores: repressão e extinção.
Isso nos leva ao outro ponto, e vou tomar o caso dos negros, questão misteriosamente surgida no exemplo do fotógrafo. O que muda no fundo é o processo de aculturação e construção do preconceito, porém todos compartilham de partida a mesma coisa: chegaram aqui raptados e para serem escravos. Até agora não aconteceram reparações adequadas ou reconhecimentos históricos e subjetivos sobre isso em nenhum lugar da América Latina. Estão os negros brasileiros, colombianos, hondurenhos e mexicanos em condições tão diferentes assim? Como se constrói o racismo em cada lugar? São distintos onde? Bom, na Argentina e Uruguai a coisa foi bem diferente mesmo... alí a morte foi mais explicita, se podemos dizer isso... e no México... eis aí algo para o fotografo passar a considerar. Saberá ele que existem negros no México? Para muitas pessoas aqui, particularmente a classe média, uma elite extremamente desconhecedora de seus processos históricos e racista como a mexicana (igualzinha a brasileira, afinal quem já não ouviu o absurdo de dizerem que não há racismo no Brasil?!), a resposta é clara: não há negros no México! Pois sendo esse o entendimento que se dá, realmente passamos a compreender porque o Brasil não é latino americano. Somos mais negros que indígenas, enquanto aqui é o contrário, e isso nos exclui da identidade latina. O que será que o rapaz pensaria de minha cor?
Outro ponto comum nos erros da questão latina, ou mesmo dos lugares não tão comuns sobre o reconhecimento, é o fato de se negar ao outro o direito a auto-determinação. Para começo de conversa, é latino quem diz que é! A coisa não é tão simples, mas dá pra entender. Como estamos considerando vários elementos subjetivos na formação da identidade, tanto individual como coletiva, é fundamental perguntar aos interessados e envolvidos nesse processo o que eles pensam de si mesmos. Claro que muitos brasileiros não se consideram latinos, particularmente porque não se tem o espanhol como língua oficial ou se a pergunta for feita para uma classe média branca acostumada com suas referencias européias; além de também existir um profundo desconhecimento dos processos de colonização por grande parte dos países latinos e do roubo de suas memórias. Temos que considerar isso, da mesma forma que o reconhecimento não se constrói sem uma memória justa, coisa que também até esse momento nunca rolou tendo o lugar da negritude nesses processos de formação do povo brasileiro e latino como um todo.
Mas se há algo que não se desconhece e que sabemos muito bem, é a relação entre as elites e as multidões; A polícia racista e a criminalização dos pobres; A corrupção institucional; A herança escravocrata; Os privilégios de cor e gênero; Os lugares subalternos; A mentalidade colonial; O classismo; As ditaduras; Os assassinatos; Os carros blindados; A quantidade de latinos na lista das pessoas mais ricas do mundo; Os movimentos sociais, caralho, os movimentos sociais!; a luta indígena; Os moradores de rua; A fome; etc, etc, etc. São todas coisas compartilhadas na América Latina de modo singular. São fatores pertencentes a processos sócio-políticos compartilhados, que possuem sim particularidades e modos próprios de operarem, mas facilmente identificados por todos latinos. A coisa é visceral e está no corpo. Não é determinante, mas claro que há sutilezas dependendo da classe social por onde você transita quando está em outro país e sua leitura pode ser bastante influenciada por isso. Por onde andou esse rapaz enquanto esteva no Brasil? Como se deu a aproximação com as pessoas que estão em suas fotos? Por onde andará ele no México? Então, como falei, latino é quem diz que é, mas que se garante! É negro quem se garante negro e é índio quem se garante índio.
No que diz respeito a solidariedade, nós brasileiros nos garantimos desde a Terra do Fogo até Tijuana. Na minha casa, e na de várias pessoas, se comem dois, comem três. Naquilo que interessa a luta por uma vida melhor, somos Mapuches, Xavantes, Garifunas, e Mazatecos. Nossa memória compartilha o terror da colonização que teve inicio a mais de 500 anos. Assim também, cantamos e dançamos sem esquecer de onde viemos. Somos um monte de comedores de feijão e milho e o trabalhador que bebe a cachaça no buteco da periferia paulistana tem as mesmas histórias que o mexicano na pulqueria em La Merced ou Tepito no DF. Aqui salário mínimo nunca foi sequer salário e mesmo assim vive uma família inteira com isso. Poetas sarcásticos que sempre farão piadas e “bromas” de portugueses e espanhóis, mesmo sabendo que muitos deles são “buena onda”. O gaúcho pode ter mais afinidade com o uruguaio do que com o maranhense, da mesma forma que o maia de Chiapas se aproxima mais do quatemalteco do que com o norteño. Aqui vivemos e agradecemos aos lindos Orixás, a única Pachamama e a la Guadalupe. Não somos latinos?
Eu digo que sou. E me garanto!
Muito bom. Adorei!
ResponderExcluirAlessandra, amiga da Maíra, do Nuno e da Mariana Serafim (da PUC). Vamos nos conhecerE Estarei no México em Janeiro. Abraços.
Massa!! to com vcs e não abro, se eu tivesse ai ele tinha que ter voltado do fone e me explicado direitinho de onde ele tirou isso.
ResponderExcluirJunior Animal, amigo de Nuno e Maira de Fortaleza.
Concordo com o fotografo. Costumamos pegar o México como um "modelo" de país latino. Assim, os outros países teriam que ter características em comum com o México para se assemelhar ao modelo latino. Se esse modelo fosse o Brasil, os outros não seriam considerados latinos provavelmente, apenas o Brasil.
ResponderExcluirAs várias características citadas por você como.. fome, pobresa, carros blindados... etc, não são características latinas. São mundiais. Existe isso na Europa, na Ásia, na América... não basta um país como Indonésia por exemplo, ter todas essas características em sua cultura, para que seja considerado latino. Os países latinos não são diferentes de muitos países no mundo. Como o exemplo que citei, Indonesia.. se assemelha muito ao Brasil em suas características como país (infra estrutura) e até algumas culturais. Tem pobreza como aqui, ricos como aqui, violência, corrupção... e nem por isso é latino. Não somos "hermanos" de nossos países vizinho, como eles tratam uns aos outros. Sabemos mais sobre Europa, Eua do que sobre eles. Não conhecemos suas culturas como a de países centenas de vezes mais distantes de nós. Somos latinos geograficamente, mas culturalmente, não creio.
OI Felipe. Valeu por seu comentário. Acho que em alguns pontos você tem razão. Algumas coisas que compartilhamos que citei aqui realmente não são exclusividade de um modo de ser latino. Existe uma dimensao muito mais global. E você tem razão ao dizer que não temos a mesma relação com nossos vizinhos e que nosso olhar está mais voltado para a europa e EUA. É tanto isso que chamamos todo e qualquer estrangeiro de gringo! Um absurdo com relação a qualquer latino. Concordo contigo que nos falta conhecer muito mais de nossos hermanos... Entretanto, existem particularidades compartilhadas na maneira de lidar com isso, mesmo que não nomeamos isso como algo latino. O nome é o que menos importa. Como falei, somos mais antropofagicos entre a patagonia e o Mexico que qualquer outro lugar. Brasil e Mexico são tão contraditorios e conflitivos que não posso imaginar outro lugar com essa cara, e que nos aproxime tanto nesse sentido. Não que tenha estado por todo o planeta, mas do que escuto por ai, e dos lugares em que estive isso é mesmo impressionante. Vejamos a musica, de raiz africana, que compartilhamos. Salsa, cumbia, samba, e suas variareis são todas marcadas por essa tradição. E olha a Argentina e o Uruguai, são eles latinos? A cultura musical e nacional esta marcada pelo tango, nenhum outro lugar há isso. Falam espanhol, mas não posso ver eles compartilhando mais semelhanças hoje com a america central do que o Brasil. Veja a população amazonica, e paraense, eles são mais venezuelanos e bolivianos que gauchos. E são brasileiros não? E o que pensar da subjetividade dos afetos, dos sentimentos, do ciumes, das paixões, o drama, não compartilhamos isso tambem? A minha bronca com o fotografo é o fato dele afirmar que não somos latinos a partir de uma generalização e negar ao outro o direito de dizer quem ele é. Como falei, é latino quem se garante como tal. Vejamos os indigenas de qualquer lugar da America, em muitos casos é um absurdo chama los de bolivianos, colombianos, guatemaltecos, mexicanos, etc. Muitos não falam espanhol, não compartilham nada dessas identidades nacionais. Já ouvi muitos falarem que não são mexicanos ou bolivianos mesmo! São mapuches, mixes, mazatecos, xavantes! É o caso do Brasil. Em um certo sentido a ideia de nacionalismo é o que continua fodendo tudo. “São os nosso indios!” Brincadeira de mal gosto, não? Enquanto uma latinidade é muito mais um modo compartilhado de ser diante do colonizador, uma antropofagia como disse, um compartilhar cultural e social que vai muito além das fronteiras nacionais. E ai uso seu exemplo da Indonesia. Compartlihamos tragedias produzidas pelo capitalismo, sem duvida, mas nada ou muito pouco, da cultura diante do que fazemos com isso. É jeitinho saca? Porque o mundo inteiro começa a olhar pra america latina como um todo hoje, em tempos de crise global? O que querem alem de continuar nos roubando? Exatamente porque temos uma capacidade muito melhor de lidar com as crises, querem aprender como é isso. Fomos constituidos na crise, nos conflitos e as culturas que se desenvolveram aqui compartilham essa condição. Claro que a coisa é complexa e mais delicada, com muitas sutilezas e particularidades, mas volto a dizer: não se pode dizer que o outro é ou não é isso ou aquilo sem falar com ele.
ResponderExcluircontinua...
Quem define a identidade é aquele que fala de si. Quando o outro diz quem você é, a emancipação nunca chega. A identidade negada é um obstaculo. Se você não se define latino tudo bem, o problema é quando achamos um erro e negamos o direito de outros fazerem isso. O fotografo era um playboy que por melhor formação, intenção e erudição que tenha tido na vida, lhe falta uma experiencia e compreensão do mundo sem as mesmas oportunidades que ele teve. O cara veio pra Sampa e tirou foto de um monte de gente fofida, e sabe o que ele fez com isso? Além de uma exposição pra se promover, porra nenhuma! Ele voltou pra sua vida confortavel la no Mexico e nós continuamos na mesma merda. Não muito diferente por exemplo da classe média paulistana e suas reclamações estéreis. Falar que não somos latinos porque não escutamos rock em espanhol foi o ó... abraços.
ResponderExcluirMuito bom Alessandro, primeira vez que eu visito blog, assim como a falta de conhecimento do Brasil sobre os países latinos, a mesma acontece dos países latinos sobre o Brasil, realmente Argentina, Uruguai e Chile, o povo anseia mais por uma visão européia até mesmo no comportamento, e a imprensa do México, fala muito mal do Brasil, porque na visão deles eles representam a América Latina.
ResponderExcluirGostei da sua comparação com o Norte e Sul do país, todas essas diferenças são visíveis porque nunca existiu um sistema de educação eficiente, que distribuísse informações sobre todo o nosso território por igual, muitos do Sul gostam do rock britânico, agora se você perguntar para um deles quem foi Clara Nunes, Sérgio Mendes e etc, não sabem, nem mesmo tem idéia do que é o samba-raiz, esse exemplo da música mostra como somos tão vulneráveis da própria cultura, quanto mais de nossos hermanos rsrs
Muito bom o texto até :)
Eu sou colombiano e nao falo português muito bem, mas eu penso que os brasileiros sao latinos. eu nao he nunca estudiado o português mas posso escrever um pouco e falar tambem, isso quere dezir que mesmo nossas linguas sao proximas :) eu nao posso escrever en alemao sim estudiar alemao ...
ResponderExcluirOlá Musik. Realmente, independente da sutilezas e das diferenças linguistica, olhamos o mundo, comemos e nos movimentos de modos muito próximos. Um grande abraço
ResponderExcluirEu comecei a me indagar sobre esse assunto quando estava na Colômbia e fiz check-in no foursquare em um restaurante, e eis que me surge uma nova "medalha": "Parabéns!! Esse é o seu primeiro check-in em um restaurante latino-americano!" (AN?? Oo) Fiquei indignada! Não sabia, e nem sei ainda, nada sobre o assunto, mas tinha certeza de que eu era latina sim :P então dei uma leve pesquisada e vi que alguns estudiosos consideram a região denominada de Cone Sul (que abrange Chile, Argentina, Uruguai, Paraguai, toda a Região Sul do Brasil e o estado de São Paulo, com exceção do Paraguai) é considerada plenamente pertencente à civilização ocidental, por causa da economia forte etc. Mas eu sempre achei que essa divisão sócio-política-cultural(?) tivesse associada apenas à origem dos povos, enfim, achei meio fajuto isso, vi nesse blog: http://videmundus.blogspot.com.br/2011/10/brasil-nao-e-considerado-um-pais.html
ResponderExcluirEu não sou latino. Não há a menor razão racional para se sentir parte desse conceito abstrato, a julgar pela reação daqueles que defendem isso, parece ser uma condição genética inescapável, um arranjo do universo, mas é interessante como não conhecem a história do termo, não questionam, não sabem as implicações políticas desse rótulo.
ResponderExcluirA idéia foi criada por Michel Chevalier, um francês que disse que essa parte da América era habitada pela raça latina e portanto tinha que se alinhar com a Europa latina, que também seria habitada por essa raça, eram idéias de um movimento chamado panlatinismo, mas notem o Brasil não era incluído nessa visão de Michel Chevalier,Simon Bolivar quando fez suas reuniões para discutir uma unificação da América não chamou o Brasil. Essas mesmas idéias levaram Napoleão III a idéia de que a França seria o líder natural no panlatinismo e isso o levou a invadir o México, para por em prática sua América Latina, que seria um contraponto a América Anglo Saxã de influência britânica, que era inimiga da França. Na concepção desse panlatinismo, Quebec no Canadá, é parte dessa região de natural domínio francês, inclusive em Ville de Quebec(a capital), tem o Parc de Amerique-latine, onde você vê a bandeira de Quebec ao lado de outras bandeiras.
Eu não sou panlatinista, não vejo razão para aceitar uma concepção francesa arbitrária, com fins políticos e muito menos creio que devo abdicar de meus direitos e liberdades garantidas pelo estado democrático de direito, para me comportar como terceiros me dizem para me comportar.
Eu não sei por que os latinistas colocam os acontecimentos da colonização em primeira pessoa, como se cada ato de séculos no passado lhes fosse infrigido pessoalmente, como disse Julio Prestes, devemos nossas instituições e o estado brasileiro a Portugal, sem isso nada, nem mesmo o estado brasileiro ou sua população estaria aqui. Minha família imigrou do Minho em Portugal e Galícia na Espanha, depois que o Brasil já era independente, para buscar uma vida melhor aqui no Brasil e isso faria de mim um monstro? E outros tantos milhões de pessoas que descendem de imigrantes que vieram só para conseguir uma vida melhor aqui, não seriam brasileiros só por que para alguns eles fazem parte de um grupo de opressores imaginários?
O brasil é uma nação formada por pessoas de todo o mundo e nenhum deles é mais ou menos brasileiro que o outro, só na cidade de São Paulo, são mais de 100 nacionalidades diferentes das quais os paulistanos descendem e são todos brasileiros.
Por isso eu não sou latino, esse termo representa uma série de idéias que se acumulam desde o século XIX, que eu não compactuo, prefiro ser um homem de uma família que no passado quiz mudar de vida e saiu de seu país e isso resultou em mim aqui, por isso sou cidadão do mundo.